Uma das dúvidas prementes que o retorno da São Paulo Fashion Week aos desfiles presenciais despertou é como as ideias dos estilistas sairiam do estado de letargia forçada dos últimos dois anos. Embora seja cedo para dizer se o choque do isolamento mudou as entranhas da criação de moda do lado de cá do Atlântico, os primeiros dias da semana deixaram evidente o quanto os criadores andam reflexivos. Alguns deles, até místicos.
Na comemoração dos 15 anos da marca Lilly Sarti, na noite de quarta-feira, as irmãs Lilly e Renata Sarti mergulharam no universo de tons esmaecidos, terrosos e sóbrios para elucubrar sobre o sentimento de clausura.
Pinturas rupestres entremeadas em detalhes quase invisíveis, dos aviamentos à imagem borrada atrás de um casaco feito de pelos, remetiam ao momento de escape de um tempo em que as quatro paredes da casa eram a caverna de cada um.
Amigas da dupla, como a atriz Monica Martelli e a modelo Isabella Fiorentino, desfilaram as saias bem cortadas e o viés boêmio da etiqueta conhecida entre as festeiras da capital paulista.
Sem poder fazer festa, a reunião delas foi num sofá, montado na passarela, em que as convidadas apareciam trajadas com a versão de elegância da marca montada em camurça, crochê e estruturas ampliadas nos ombros.
Afiada em seu propósito de agradar às mulheres que preferem o fashionismo comedido, sem firulas, Lilly afirma que a ideia se desenvolveu após viagem à paisagem árida e mística de Goiás, onde refletiu sobre o estado das coisas e teria sido tocada pelo ambiente distante do concreto paulistano.
Das origens da religiosidade brasileira e a diversidade de suas cores, a Meninos Rei abriu a quinta-feira, dentro da programação do Projeto Sankofa, sugerindo um conceito de elegância cosmopolita e provando ser possível transpor para a passarela a herança estética do candomblé.
Numa passarela majoritariamente formada por modelos negros, o contraste dos tecidos africanos, cheios de grafismos e geometria, serviam de base para a coleção bem executada em propostas de tops, vestidos, shorts e uma alfaiataria cortada com perfeccionismo.
Assim como fizeram no desfile virtual da temporada passada, os irmãos Céu e Junior Rocha olharam para a entidade Exú para compor as referências da coleção, que foi aplaudida de pé pela plateia e foi trajada na passarela por famosos, como os atores Ícaro Silva e Rainer Cadete, e pessoas de diferentes
corpos e padrões de beleza.
"Quisemos mostrar os corpos reais, que são marginalizados assim como essas entidades [do candomblé], e colocá-los no centro de tudo, homenageando elas e o povo da rua", afirmam os designers baianos.
A elegância que não encontra mais fronteiras antropométricas nem de gênero moldou uma das melhores coleções da temporada até agora. João Pimenta amarrou na passarela roupas que tratam do pós-sono, a saída do casulo pandêmico, mas sob a ótica da quebra de paradigmas sobre modelagens.
Como se amarrotadas pelos dias inertes na cama, as golas da camisaria aparecem deslocadas, as proporções de cima e de baixo da roupa não seguem ordem aparente, e os casacos, pesados, lembram edredons que cobriram os corpos nos dias mais difíceis.
Todos saíram mudados desse tempo, e, espertamente, o estilista chamou a artista Alma Negrot para ampliar a visão cronológica do tempo e aplicar na cara dos modelos intervenções de chifres e narizes que criaram novos seres. É como se assim como a moda evoluiu, o humano também se alterou.
O compilado de alfaiataria proposto por Pimenta é tingido pelos tons clássicos, com variações de bege, cinzas, preto e branco. Nesta passarela, a visão é centrada na forma, não na imagem.
"A ideia é esquecer o que passou e tentar vislumbrar o que é a elegância de hoje. Afinal, o que a moda pode proporcionar depois disso tudo? Talvez o conforto, o bem-estar, a beleza de um novo tempo", explica o estilista.