Com o estresse causado pelo distanciamento social, preocupações e perdas de entes queridos, o simples gesto de publicar fotos de viagens pode desencadear uma série de comentários ofensivos nas redes sociais e prejuízos também a pontos turísticos e redes hoteleiras.
A reação potencializada durante a pandemia recebeu até nome: "travel shaming" (constrangimento de viagem, em português). Na prática, consiste no ato de criticar publicamente algum viajante, geralmente na internet, por entender que ele teve uma conduta irresponsável.
Esse tipo de comportamento ganhou destaque no último ano quando celebridades e influenciadores digitais foram cancelados após publicarem nas redes conteúdos considerados inapropriados para o momento.
Em caso recente, o jogador Marcelo, do Real Madrid e com passagens pela seleção brasileira, recebeu uma enxurrada de críticas no seu perfil do Instagram depois de postar uma foto com a família na orla de uma praia de Valência, na Espanha. Todos estavam sem máscara.
Além das reações negativas dos internautas, o atleta e os familiares foram multados em 2.700 (cerca de R$ 18 mil) pelo Departamento de Justiça da cidade por furar o bloqueio perimetral imposto como medida restritiva para frear a pandemia e também pela não utilização de máscara.
Vários outros casos semelhantes pelo mundo fizeram até o papa Francisco condenar aqueles que viajaram em meio à pandemia. "Eles não pensaram naqueles que estavam ficando em casa, nos problemas econômicos que atingiram várias pessoas durante o lockdown, nas pessoas doentes, apenas em sair no feriado e se divertir", disse o pontífice em janeiro.
Mais que constrangimentos pessoais, o "travel shaming" pode atingir diferentes esferas do setor turístico e impactar de forma negativa a reputação de marcas ou destinos, afirma Alan Guizi, professor de turismo da Universidade Anhembi Morumbi.
Segundo ele, ferramentas que mapeiam o perfil e comportamento dos consumidores nas redes sociais e nos sites possibilitam ações de marketing e comunicação mais personalizadas. A estratégia estimula a criação das chamadas tribos de consumo, nas quais pessoas buscam marcas por afinidades, crenças e valores.
"Quando alguém publica uma foto em um hotel em situações de risco de contágio, por exemplo, seus seguidores podem entender que o estabelecimento não tem adotado os protocolos de segurança adequados. Com isso, pessoas que antes se viam representadas por essa marca passam a negá-la", diz Guizi. "No caso de um destino, o internauta pode ter a impressão de que está largado."
Na era do cancelamento, a crítica ao comportamento alheio se estende àqueles que consideram suas viagens necessárias. Uma vez por mês, o médico ortopedista Vitor Luis Pereira, 31, viaja de São Paulo para Salvador para encontrar a namorada, também médica.
Em períodos de menos restrições na capital baiana, o médico conta que chegou a ir à praia, mas usando máscaras, álcool em gel e mantendo distância das outras pessoas.
Em fotografias que publicou sem máscara, ele recebeu críticas e foi questionado sobre o passeio na pandemia.
"Já publiquei foto no aeroporto e me perguntaram se eu só viajo e não trabalho", afirma Pereira. "Depois de jornadas duras, publico fotos de poucos momentos de lazer e recebo críticas. Então, temos de postar só o que é ruim?"
Medidas de restrições que nos levam a renúncias diárias aumentam o estresse e explicam em parte o movimento do "travel shaming" surgido na pandemia, diz Ana Gabriela Andriani, psicóloga especializada em fenomenologia existencial.
"Muita gente não viaja para evitar contato com outras pessoas e também porque não tem condições financeiras na pandemia. Então, quando veem outras pessoas viajando, acabam ficando ressentidas e se perguntam: se eu faço esse sacrifício, por que ele não faz?", avalia Andriani. "Vivemos um momento em que todos estão mais sensibilizados, o que faz com que a crítica ao outro aumente."
De acordo com a psicóloga, se por um lado as redes sociais podem ser vitrines de ostentação, por outro elas acabam se tornando espaço em que as pessoas descarregam sentimentos negativos potencializados pela pandemia. Há ambiente propício para manifestações de raiva e de inveja, uma vez que não há contato físico para o enfrentamento.
O psicoterapeuta clínico Rafael Bacciotti acrescenta que, em períodos de alto nível de estresse, as críticas tendem a crescer porque as pessoas procuram alguém para culpar. "Apontar o dedo para outra pessoa também é uma forma de lidar com o próprio sofrimento e vulnerabilidade, ainda que de forma inconsciente".
Embora tenha se intensificado nos últimos meses, o movimento de contestação de atividades turísticas já existia antes da pandemia.
Lançado em 2013, o documentário "Blackfish" gerou discussão sobre determinadas atividades turísticas que envolvem interação com animais. O longa trata da baleia Tilikum, responsável pela morte de três pessoas, e das consequências de manter animais em cativeiro.
"Nadar com botos em Manaus, por exemplo, pode não ser bem recebido nas redes. Hoje, o conteúdo pode inclusive romper fronteiras e render comentários pedagógicos, agressivos e reprovações", diz Eveline Baptistella, professora de semiótica e pesquisadora de ética e sustentabilidade no turismo da Universidade do Estado de Mato Grosso.
Na pandemia, essas cobranças foram potencializadas, e o receio do cancelamento tem mudado também a estratégia dos criadores de conteúdos de viagem na internet.
Com mais de 110 mil seguidores no Instagram, André de Mello parou de publicar selfies e vídeos mostrando o rosto para se preservar na pandemia. "Muitas pessoas estão em casa e gostariam de viajar, mas não podem. Em respeito a elas, passei a adotar postura mais discreta e impessoal", afirma Mello, que na pandemia viajou para o Egito e para as Maldivas, lugares com maior controle do coronavírus.
Uma dica para pessoas que querem publicar fotos de viagens é explicar na legenda os motivos do deslocamento e as circunstâncias do momento em que o registro foi feito, além de ressaltar os riscos na pandemia. "É preciso analisar se o discurso fere ou contraria alguém. Como podem ser interpretadas fotos de um rosto sem máscara ou com pessoas aglomeradas? É preciso pôr na balança", diz Eveline.