Há dezenas de vacinas contra a Covid-19 sendo testadas em humanos e pelo menos 11 na última fase de testes antes da aprovação, mas, além dos resultados de eficácia e segurança, os ensaios clínicos precisam também apresentar uma boa diversidade étnico-racial e de diferentes faixas etárias antes do uso em larga escala, segundo especialistas.
Denise Garrett, epidemiologista e vice-presidente do Instituto Sabin, explica que a importância de testar um medicamento ou vacina em faixas etárias, raças e etnias distintas não só serve para demonstrar segurança nesses diversos grupos mas também para se aproximar mais da efetividade real da vacina quando ela for usada amplamente.
"Sabemos que existem diferenças nos sistemas imunes de homens e mulheres, idosos e crianças, indígenas e outros grupos étnicos. Se eu tenho um ensaio clínico em que a maioria dos voluntários é de um determinado gênero, de uma determinada raça e idade, a eficácia encontrada na fase 3 vai ficar cada vez mais longe da efetividade quando aplicarmos a vacina 'no mundo real'. Uma maneira de tirar esse viés é incluir uma boa representatividade nos testes."
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Até o momento, apenas as farmacêuticas Pfizer e Moderna reportaram elevada diversidade étnica na terceira e última fase de testes: 42% dos participantes da vacina da Pfizer nos Estados Unidos eram de minorias étnico-raciais, e 37% dos participantes da vacina Moderna.
Em todos os ensaios clínicos de vacinas publicados até agora, os pesquisadores diferem o que chamam de raça (termo utilizado para designar cor de pele) de etnia (identidade cultural ou ancestral) dos participantes.
A Universidade de Oxford (Reino Unido) desenvolve, em parceria com a farmacêutica AstraZeneca, uma candidata à vacina cujos primeiros resultados da fase combinada 2/3 (ainda não finalizada) apontaram uma boa capacidade de induzir resposta imune, inclusive em adultos com mais de 70 anos.
Mas, avaliando os grupos étnico-raciais do estudo, 95% dos participantes (524 de 552) eram brancos. Entre os 5% restantes, apenas um voluntário era negro. Os outros grupos representados eram asiáticos (3,4%), miscigenados (0,72%) e outras minorias, incluindo hispânicos, indianos e irlandeses (0,72%).
Outra vacina com dados divulgados até o momento de fases 1 e 2 com baixa diversidade étnico-racial é a da Janssen, braço farmacêutico da Johnson & Johnson. Nos testes iniciais, que dividiu os participantes em três grupos, 94% (749 de 796) dos voluntários eram brancos e 96% (765 de 796) eram classificados como "não hispânicos ou latinos".
A vacina Sputnik V, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia, não apresentou dados científicos sobre a sua fase 3, embora tenha divulgado, no último dia 11, que a droga possui eficácia de 92%. Na fase combinada 1/2, no entanto, 100% dos participantes envolvidos no estudo eram brancos.
GVerônica Coelho, médica imunologista e pesquisadora do InCor (Instituto do Coração), explica que cada indivíduo possui suas particularidades imunológicas, algumas relacionadas à ancestralidade, outras não.
"Existem moléculas nas células apresentadoras de antígenos [corpos estranhos] para o sistema imune e a diversidade dessas moléculas depende não só da genética, mas também da epigenética [como o meio ambiente influencia a expressão gênica], caracterizada pelas experiências vividas. Então testar diferentes grupos étnicos é fundamental justamente para ter a maior abrangência dessa diversidade."
É importante destacar que, nas fases 1 e 2, quando os testes são feitos entre dezenas e centenas de voluntários, a representatividade étnica mais baixa não é um fator tão determinante, pois procura-se avaliar a segurança do fármaco e se ele induz, de fato, resposta imune.
Nas fases anteriores, a Pfizer e a Moderna também não apresentaram representatividade racial nos voluntários recrutados, com 96,7% e 89% de brancos em seus estudos, que contaram com 60 e 45 participantes, respectivamente.
A Coronavac, vacina desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac, atualmente na terceira e última fase de testes, realizou os ensaios de fase 1 e 2 na China, com resultados divulgados na última terça-feira (17), indicando que o imunizante é seguro e produz resposta imune em 97% dos participantes.
A farmacêutica não expôs no artigo, publicado na revista científica The Lancet, a diversidade étnica dos participantes. Mas, ao conduzir a fase 3 simultaneamente na Turquia, Indonésia e no Brasil, onde o imunizante é testado em mais de 13 mil voluntários em 16 centros espalhados por oito estados brasileiros, minorias raciais devem ser representadas. "Aqui os grupos avaliados são mais miscigenados."
Coelho ressalta, porém, que ainda não há um conhecimento suficiente das vacinas em desenvolvimento nem da própria doença para dizer quais grupos podem, eventualmente, apresentar uma resposta imune melhor. "O fato de alguns estudos mostrarem diferenças genéticas que influenciam na produção de uma célula ou de um tipo de fator protetor, como os interferons [responsáveis por impedir a replicação viral, molécula que aparece alterada em 1 em cada 4 europeus e relacionada com casos mais graves da doença], não é definitivo para saber como vai ser a resposta das vacinas."
Em um ensaio clínico, a eficácia pode ser definida como a proporção da redução de casos entre o grupo que recebeu o imunizante e o que recebeu o placebo. Se o número de casos confirmados da doença for maior no grupo que recebeu o placebo em comparação ao grupo que recebeu o imunizante, a eficácia da vacina é comprovada.
Já quando o medicamento ou vacina passa a ser utilizado na população como um todo, e não no grupo do estudo clínico, avalia-se a efetividade da droga. A efetividade de diferentes imunizantes varia também com outros fatores.
"Sempre temos perda da efetividade porque o esquema de vacinação é em duas doses, e a pessoa não retorna para tomar a segunda, ou porque não há homogeneidade na cobertura vacinal", afirma Garrett.
A epidemiologista reforça que, como as vacinas contra a Covid-19 estão sendo feitas a toque de caixa, muitos dos ensaios foram conduzidos nas condições que eram possíveis, mesmo nos casos em que há uma sub-representação de minorias. Mas esse cenário deve mudar, e as próprias farmacêuticas devem se sentir pressionadas a incluir minorias raciais em seus testes.
Além da importância de se verificar a eficácia nesses grupos, a pandemia afetou de maneira desproporcional as populações negras, hispânicas e outras minorias raciais em todo o mundo. Em SP, a mortalidade entre negros é 60% maior que entre brancos. Nos EUA, foram os pobres, negros e latinos que mais sofreram e perderam vidas pelo vírus.
Os fatores associados a essa discrepância são maior vulnerabilidade social, condições de habitação que tornam difícil manter o distanciamento social, higiene precária e atendimento hospitalar desigual, e a maior incidência de comorbidades nesses grupos, também relacionada a uma menor assistência médica primária e condições de desigualdade.
"Temos que pensar que, além dos fatores biológicos entre os indivíduos, existe a diferença inegável de exposição ao vírus nos diferentes grupos. Então, para as vacinas contra a Covid-19, é algo crítico, porque na maioria dos ensaios clínicos, não há essa representatividade alta ou mesmo igual. Isso é essencial para vacinas, especificamente", diz.