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José Rainha Júnior se tornou face pública das invasões e teve ruptura nebulosa com MST

23 jan 2024 às 12:30

Um dos rostos mais conhecidos da história do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), José Rainha Júnior, 63, também é um dos personagens mais controversos do grupo em suas quatro décadas, completas neste janeiro. Entre militantes, ele é tratado com admiração, respeito, desconfiança e decepção, muitas vezes pela mesma pessoa.


A fama que acompanha Rainha é a de comandante carismático das frentes de massa -o agrupamento de pessoas para uma invasão (ou ocupação, como dizem os sem-terra). Perseguições, prisões e tiroteios compõem a lenda do capixaba de São Gabriel da Palha (200 km de Vitória), cujas histórias seguem sendo compartilhadas pelos camponeses.


"Tem que ter coragem e audácia para ser liderança de massas. Se parar para pensar sobre o medo, você não faz nada", diz ele.


Por outro lado, as atitudes também despertaram o receio de dirigentes do movimento de que essa ousadia colocasse os sem-terra em risco e estigmatizasse a luta pela reforma agrária se fosse mal dosada.


Rainha teve uma ruptura nebulosa com o MST, que se arrastou de 2003 a 2007. Em 2014, fundou a FNL (Frente Nacional de Luta Campo e Cidade), cuja proposta é aglutinar movimentos sociais que brigam por moradia nas zonas rurais e urbanas.


Ele comanda a frente a partir de sua casa em um assentamento no Mirante do Paranapanema (610 km de São Paulo), cidade do Pontal do Paranapanema, na divisa de São Paulo com o Paraná, que foi o epicentro do conflito agrário do qual ele foi um dos protagonistas na década de 1990.


É nela, sob um gazebo ao lado de um pequeno lago, que ele recebe a reportagem, cercado de objetos da sua memorabilia militante: uma chaleira que teria pertencido a Luiz Carlos Prestes e um facão enferrujado que ganhou de seu irmão.


A trajetória de Rainha nos movimentos do campo começou aos 17 anos, em 1978, quando conheceu Frei Betto, frade dominicano adepto da Teologia da Libertação, corrente da Igreja Católica que une princípios cristãos a uma ótica de esquerda. O religioso atuou pela construção das Comunidades Eclesiais de Base no Espírito Santo logo após deixar a prisão no regime militar.


A família de Rainha morava em Linhares (ES), havia perdido o terreno que possuía e tinha se tornado meeira na cafeicultura, ou seja, trabalhava em terras alheias e repartia os rendimentos. Nesse contexto precário, as falas do religioso sobre reforma agrária levaram-no a se juntar à Pastoral da Juventude, onde aprenderia a ler e a escrever.


Depois de passagem pelo sindicalismo urbano em São Paulo, Rainha se juntou ao MST em 1985, por ocasião do primeiro congresso nacional do movimento, em Curitiba (PR). Ele recebeu, então, a tarefa de expandir o MST pelo Nordeste.


De 1985 a 1990, partiu da Bahia e desbravou Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí e Maranhão, montando acampamentos e assentamentos.


Em 1991, assumiu a missão de rumar para o Pontal do Paranapanema, onde a luta dos sem-terra ganhava corpo, mas atingiria novo patamar ao longo da década, com sua contribuição.


Localizada no extremo oeste paulista, a região engloba 32 municípios e transformou-se em um dos principais focos de conflito de terra no país devido a mais de 1 milhão de hectares de terras devolutas que ali se concentram -áreas públicas ocupadas irregularmente que nunca tiveram destinação definida pelo poder público e em nenhum momento tiveram dono particular.


O MST fez sua primeira ocupação na região em 1990, à qual se sucederam dezenas, já com a participação de Rainha. Ele então se tornaria conhecido ao ser apresentado como principal líder sem-terra na região pelos veículos de comunicação de maior alcance.


Com as ocupações, o MST transformou o problema da reforma agrária em pauta nacional. Na mesma época, os massacres de Corumbiara (Rondônia), em 1995, e de Eldorado do Carajás (Pará), em 1996, jogaram ainda mais luz sobre o movimento. No segundo caso, 19 sem-terra foram mortos em ação de policiais militares para desocupar uma rodovia.


Em 1996, a novela "O Rei do Gado", da TV Globo, tematizou a disputa agrária e colocou como um de seus personagens o sem-terra Regino, interpretado por Jackson Antunes. O autor Benedito Ruy Barbosa trocou impressões com Rainha ao longo da exibição da novela para moldar o personagem.


As ocupações e a popularização do MST transformaram Rainha em pessoa visada. Denúncias de ameaças e ataques da UDR (União Democrática Ruralista), entidade de latifundiários recriada no Pontal em reação aos sem-terra, foram frequentes no período.


Ao longo dos anos, Rainha foi preso 13 vezes, nove delas somente no Pontal do Paranapanema. Em 1997, foi condenado a 26 anos e seis meses de cadeia, acusado de participação nos homicídios de um fazendeiro e de um policial em Pedro Canário, no norte capixaba.


Um dos maiores advogados criminalistas do país, Evandro Lins e Silva, aos 88 anos, assumiu então o caso, a pedido de João Pedro Stedile, fundador do MST, e José Saramago, escritor português. Rainha foi absolvido em 2000, e o principal argumento de contestação foi o de que ele estava no Ceará na data dos assassinatos. O episódio é considerado um marco na história do MST.


Em 2002, ele levou um tiro nas costas do pecuarista Roberto Junqueira, irmão da proprietária de uma fazenda que havia sido ocupada.


Em março do ano passado, Rainha e dois integrantes da FNL, Luciano de Lima e Claudio Passos, foram presos preventivamente por três meses, sob acusação de extorsão de fazendeiros. Relatório da Polícia Civil apresentou prints de conversas pelo WhatsApp, gravações e extratos bancários.


Ele diz que a polícia não tem provas e que foi uma prisão política -o mesmo que afirma sobre as detenções anteriores-, como resposta a nove ocupações de terras promovidas pela FNL no chamado Carnaval Vermelho, em fevereiro de 2023.


"É tudo retórica", diz o líder da FNL, recorrendo a uma frase que repete quando confrontado com alguma informação com potencial desabonador. Segundo ele, são narrativas fabricadas na disputa política, mas que não correspondem à realidade. Nenhum dos processos de que é alvo transitou em julgado até hoje, sublinha.


Durante a entrevista à reportagem, a expressão tornou-se um cacoete quando Rainha era perguntado a respeito das muitas idas e vindas das suas articulações políticas. Levaram ao rompimento, além do desgaste com o chamado aventureirismo, que ele nega ("nunca perdi um companheiro comigo na batalha"), as movimentações que destoavam das pautas do MST no momento.


"É um grande líder de massas, e tinha muitas boas contribuições para o MST. Mas começou a tomar atitudes individuais, a fazer coisas por conta própria, sem respeitar o coletivo", afirma Stedile.


Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Rainha encontrou-se com o presidente sem combinar com o movimento. No livro "Diários da Presidência (1997-1998)", o tucano escreve que Rainha não poderia ser visto e que pediu a reunião para falar que a posição do MST era "mais agressiva" que a dele, que estaria disposto a "mais diálogo".


No governo Lula 1 (2003-2006), Rainha fez gestos para o presidente enquanto a tensão entre o governo e o MST escalavam. Em meio a onda de ocupações de prédios públicos em protesto pela reforma agrária, Rainha posou para fotos com o petista em assentamento na Bahia. Em discurso, o presidente criticou a cúpula do MST e disse que ele e Rainha continuariam companheiros quando deixasse a presidência.


A saída de Rainha foi oficializada em 2007, quando o MST distribuiu nota em que afirmava que o ex-membro não falava mais pelo movimento.


Nos últimos anos, Rainha se aproximou da corrente Movimento Esquerda Socialista do PSOL. Em entrevista para revista do MES, em 2020, disse ter sido expulso do MST por não concordar com a adesão à "política de conciliação de classes" proposta por Lula.


Rainha hoje diz que o presidente "é o cara", que de fato não conseguiria governar sem dialogar com todo o campo político e que espera ser recebido por ele. E a conciliação de classes? "Retórica, coisas pontuais. Não tem relevância".


O capixaba diz atualmente que vai levar "para o cemitério" os motivos reais da cisão. A ambição agora é a reconciliação com o MST. E a sua contribuição não é uma novidade.


"Acho que o MST abandonou, ou não valorizou muito, o maior patrimônio que tinha, a frente de massas. Investiu na produção, o que acho correto. É o maior produtor de arroz orgânico. Legal. Mas precisa retomar a sua frente de massas. Se faltar alguém, eu vou para lá", diz Rainha.


Sua proposta é juntar forças, FNL e MST. Organizar ocupações conjuntas. Seria, então, mais uma transição do líder camaleônico: a volta do lugar de onde partiu.


E qual seria o propósito dessa unificação? Segundo ele, colocar um milhão de pessoas acampadas nas ruas para forçar a reforma agrária.


"É isso que eu quero dizer ao MST: a saída está na unidade. E precisamos construí-la. E é por isso que eu sou soldado nessa construção. Porque a história, em determinados momentos, te obriga a tomar caminhos (...) Quando você tiver essa força, é como uma represa. É só soltar. O que estiver na frente, leva".


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