Os celulares que se manifestam de repente durante a aula dão pistas do perfil da turma reunida em uma sala na capital paulista em meados de novembro. Um aparelho toca uma música inesperada, outro emite uma voz humana --e seus donos se apressam em interrompê-los.
São influenciadores digitais que têm uma vida ativa nas redes sociais e foram chamados para um treinamento do Redes Cordiais, projeto que busca espalhar a ideia de "influência responsável" para enfrentar questões como polarização política, discurso de ódio e desinformação.
Na atividade daquele dia, 12 convidados aprenderam sobre segurança pública com especialistas do Instituto Sou da Paz. A ideia é aproveitar o "canhão de comunicação" dos influencers, como definiu um mediador, chamando-os de "novos Faustões, novas Fátimas Bernardes".
Criado em 2018, o Redes Cordiais faz parte de uma lista de organizações que estimulam artistas, personalidades e criadores de conteúdo a atuarem por um ambiente digital menos tóxico.
Além de agências de checagem como Lupa e Aos Fatos, plataformas como Despolarize e Politize! ganharam espaço com iniciativas para combater fake news e estimular um debate saudável e democrático no país que se dividiu entre Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL) nas eleições de 2022.
Em nome da tal cordialidade, o Redes já arrastou para seus cursos e campanhas figuras de perfis distintos como as atrizes Paolla Oliveira e Dira Paes, o humorista Fabio Porchat, os cantores Rogério Flausino e Manu Gavassi e os jornalistas Leda Nagle e Guilherme Fiuza.
"Nossa atuação tem o intuito de transformar esses atores estratégicos", diz a jornalista e pesquisadora Clara Becker, cofundadora do projeto. "Influenciadores precisam ser engajados na tarefa da educação midiática, para que se tornem melhores exemplos e compartilhem os conhecimentos."
Na roda de conversa sobre segurança, um dos chavões repetidos era a necessidade de "furar bolhas" para alcançar outros públicos e ter um impacto real. Todos os participantes daquela data tinham tendência progressista, mas em geral há a preocupação de chamar também conservadores.
"Passei a pensar duas vezes antes de compartilhar as coisas", disse à Folha o influenciador Kaique Brito (164 mil seguidores no TikTok e 96 mil no Instagram), que comparecia pela segunda vez a um encontro do Redes Cordiais. A primeira vez foi há quatro anos, quando ele tinha acabado de completar 15.
Kaique publicou um vídeo antes do segundo turno no ano passado com dicas como controlar as emoções antes de postar, tomar cuidado com "deep fakes" (imagens criadas a partir de inteligência artificial) e evitar reagir a provocações.
Na discussão sobre criminalidade e direitos humanos, influenciadores como Rodrigo Kenji, do canal Normose, Jota Marques, Clara Averbuck e Cazé Pecini concordaram que a pauta requer discussão equilibrada e dados confiáveis, mas reconheceram que abrir vias de diálogo anda difícil.
A diretora-executiva do Sou da Paz, Carolina Ricardo, disse que os influencers podem ajudar a "ampliar as vozes envolvidas no tema, chegando até o adolescente sentado em casa vendo o Instagram".
Entre uma olhada e outra no celular, o grupo também compartilhou angústias, com reclamações de que representantes da direita bolsonarista se recusam a conversar com base em argumentos, interditando debates, e que os ataques de "haters" (detratores) corroem a saúde mental dos alvos.
Uma das conclusões foi a de que é preciso tentar sentir a dor do outro, praticando a tão falada empatia, mas também admitir as próprias limitações, para não sofrer tentando salvar o mundo. Circulou ainda o conselho de fugir da armadilha de ostentar uma pretensa superioridade moral.
Um dos principais influenciadores do país, Felipe Neto teve contato com o Redes Cordiais em seus primeiros anos e já foi entrevistado num evento do projeto. Em 2021, ele fundou o Instituto Vero, com o objetivo anunciado de usar tecnologias para difundir informação e fortalecer a democracia.
Em 19 de novembro, Felipe escorregou na própria cartilha ao postar a foto de uma profissional do jornal O Estado de S. Paulo para criticar reportagens e fazer insinuações.
Logo depois ele apagou o conteúdo e fez uma nova publicação. Disse que errou, pediu desculpas à jornalista e afirmou que "não é certo expor sua foto ou incentivar qualquer tipo de perseguição a ela".
O comunicador disse à reportagem, via assessoria, que sua "missão de vida atualmente é trabalhar e investir cada vez mais em prol de uma internet mais saudável e sustentável" e que, quando criou o Vero, buscou se aproximar de organizações que já atuavam com direitos digitais e educação midiática.
O instituto de Felipe também usa influenciadores para tentar incidir na arena pública, por entender que eles concentram a atenção coletiva. "Essas figuras têm o papel de moldar o fluxo da informação, ditar tendências e sugerir o tom da conversa", diz o diretor de comunicação do Vero, Victor Vicente.
Segundo o Redes Cordiais, já passaram por suas ações 300 pessoas, seguidas por 238 milhões de contas.
No ano passado, diante da ofensiva contra as urnas eletrônicas, a entidade levou 30 influenciadores ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para falarem com técnicos e conhecerem a área de totalização dos resultados, chamada equivocadamente de "sala secreta" por Bolsonaro e aliados.
Um dos presentes era o pastor Pedrão, bolsonarista que celebrou o casamento do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Na época, ele fez uma enquete em sua página e viu que 90% dos seguidores não confiavam nas urnas. Isso não o impediu de postar conteúdos sobre a visita.
"Nosso esforço é o de plantar sementes, furar bolhas e ter diversidade. Nem sempre é fácil", diz Clara Becker. "Só de termos influenciadores abertos a ouvirem o que temos a dizer, já consideramos um sucesso, mas, obviamente, nem em todos os terrenos nossas mensagens rendem frutos."
O pastor é um exemplo, segundo ela, de ex-aluno que até melhorou pontualmente suas práticas como formador de opinião, mas "não foi exatamente convertido" à proposta de influência responsável permanente, mesmo caso da ex-deputada federal bolsonarista Alê Silva (Republicanos-MG).
Para 2024, ano de eleições municipais, está nos planos repetir a ida ao TSE e fazer uma imersão no STF (Supremo Tribunal Federal) na intenção de explicar o papel da corte e de seus ministros.
Sem fins lucrativos, o Redes é bancado por doações de organismos como o brasileiro Instituto Betty & Jacob Lafer e o americano Fundo Nacional para a Democracia. Também já recebeu recursos de big techs como Google e Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp).
A organização se define como apartidária, mas não neutra. Tem uma bandeira pró-democracia inegociável, mas evita posicionamentos ideológicos para conseguir atrair pessoas de todos os lados.