"Lá na terra dessa pessoa é normal falar assim.” Desta maneira, começou a declaração da rapper Karol Conká, no Big Brother Brasil 21, que a fez perder, pelo menos, 500 mil seguidores no Instagram nos primeiros dias de fevereiro. "Eu sou de Curitiba. É uma cidade muito ‘reservadinha’ (...) Tenho muita educação para falar com as pessoas.”
A cantora fez esta afirmação após se desentender com uma coparticipante no programa da TV Globo, a advogada Juliette Freire, que é paraibana. Com teor xenofóbico, a fala causou revolta nas redes sociais, impulsionando a queda na popularidade da rapper.
Comportamentos não apenas de Karol Conká, mas de outros participantes da atual versão do BBB, evidenciam e trazem à tona a política do cancelamento, que começou e segue muito forte na internet. Porém, se o modo de agir de alguns brothers e sisters choca e provoca revolta em quem está vendo tudo da telinha, também pode servir para levantar a reflexão sobre as próprias atitudes que temos em relação aos outros.
"Eu fiquei bastante chocado [com a fala de Karol Conká]”, conta o cantor e influencer das redes sociais Matheus Mozer, 25, do interior do Maranhão. "Eu acho que essa xenofobia é praticada por meio de micro agressões que, se você não prestar atenção, passam despercebidas. Tem coisas que estão muito intrínsecas nos comportamentos”, pontua.
Mozer mora na capital paulista desde 2016 e conta que frases que denotam preconceito contra nordestinos ainda são muito recorrentes, como referir-se a pessoas vindas do Nordeste, que tem nove Estados, como "paraíba”, ou classificar algo brega como "coisa de baiano”. "E, às vezes, [os paulistanos] reproduzem isso sem nem pensar”, comenta.
O cantor alerta que estas frases carregam um discurso de discriminação, que deve ser combatido, e conclui que a xenofobia ainda existe, principalmente por não ser amplamente discutida.
A mestra em Ciências Sociais e doutoranda em Sociologia Lina Ferreira explica de onde vêm tais comportamentos. De acordo com ela, a xenofobia, assim como outros tipos de discriminação, está baseada na ideia de uma superioridade moral de um grupo sobre outro. "Falas como estas revelam um valor muito específico, a crença de que as práticas e os costumes da comunidade socioespacial a que pertenço são superiores às outras”, afirma.
Ferreira revela, porém, que os pensamentos e estereótipos são apenas consequência de disfunções maiores. "O problema se aprofunda quando a discriminação com determinados grupos regionais se converte em padrões de desigualdades e diminuição das oportunidades dos grupos estigmatizados”, explica.
"No caso brasileiro, temos observado, historicamente, a construção estigmatizada do ‘nordestino’, que não condiz com toda a diversidade cultural e a riqueza simbólica e material produzida pelas pessoas que pertencem aos diferentes Estados que constituem aquela região do país. Esta caricatura é recorrentemente acessada para justificar as desigualdades socioeconômicas ou mesmo reforçá-las”, explica a socióloga.
O empresário e influencer londrinense Gabriel Morente, que mora em Curitiba há cerca de cinco anos, acredita que Karol Conká foi injusta ao citar o povo curitibano numa declaração preconceituosa. "Sempre fui muito bem recebido [pelos curitibanos]”, afirma.
Segundo Morente, alguns moradores da capital paranaense podem ser "reservados”, mas este não é um comportamento que deva ser vinculado à educação. "É realmente triste ver que ela quis associar o povo de Curitiba, que é um povo tão querido, a uma fala tão xenofóbica”, pontua.
Continue lendo em:
(Parte 2): Em meio às lutas anti-opressão, militantes também incorrem em erros
(Parte 3): Política do cancelamento: a nova cultura da internet
(Parte 4): Desprezo e afastamento, o cancelamento ‘à moda antiga’
*Sob supervisão de Fernanda Circhia e Luís Fernando Wiltemburg