A história demonstra que não há critérios objetivos para definir o fim da pandemia de Covid-19 e, assim como ocorreu em outras epidemias do passado, caberá às sociedades a determinação de quando voltar ao normal, já que o coronavírus continuará circulando, sofrendo mutações e reinfectando as pessoas.
A opinião é dos pesquisadores Peter Doshi, 41, editor sênior da revista científica BMJ (British Medical Journal) e professor associado da Universidade de Maryland (EUA), e David Robertson, 34, historiador da ciência e doutorando da Universidade de Princeton (EUA). Eles publicaram recentemente artigos no BMJ e no jornal americano The Washington Post sobre o tema.
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Segundo eles, mais de um século após a gripe espanhola, ainda não há um acordo sobre qual foi a última onda daquela pandemia. "Essa ideia de atingirmos algum número mágico e depois declarar o fim da pandemia e voltar ao normal é mais coisa de Hollywood do que de história", afirma Robertson em entrevista que ele e Doshi concederam à Folha por email.
Para os pesquisadores, a ampla variedade de respostas que os países têm dado à pandemia, alguns ainda com medidas rígidas, como fechamento de escolas, e outros já abertos desde o segundo semestre de 2020 mostra que essas decisões não foram tomadas com base em critérios objetivos, em métricas epidemiológicas, mas, sim, em diferentes avaliações sobre os impactos do vírus.
Eles afirmam que, embora muitas coisas na Covid ainda sejam incertas, há uma certeza de que o Sars-CoV-2 não desaparecerá. Mas isso não significa que o vírus continuará provocando o sofrimento que já causou nos últimos dois anos, porque os níveis de imunidade estão maiores, seja pelas exposições anteriores ao coronavírus seja pela vacinação.
"A principal lição da história é que as sociedades seguem em frente, aceitando a circulação contínua do novo vírus. Podemos e devemos continuar a desenvolver formas de proteger os mais vulneráveis da Covid-19, mas isso não envolverá a sua erradicação", dizem.
Pergunta - Existe um critério objetivo para declarar o fim da pandemia de Covid-19?
David Robertson - A história demonstra que não há critérios objetivos para o fim de uma pandemia respiratória como a Covid-19 porque a pandemia é antes de tudo um evento social, não biológico. Podemos ver isso na ampla variedade de respostas governamentais ao vírus.
Mesmo nos EUA, os estados têm variado muito [as respostas], com alguns continuando a decretar medidas rígidas, como fechamento de escolas e passaportes de vacinas, e outros, em sua maioria, "abertos" desde o segundo semestre de 2020.
Não houve uma métrica epidemiológica que determinasse essas diferentes respostas. Elas refletiram diferentes avaliações do impacto do vírus na sociedade, bem como o impacto das medidas de saúde pública, como o fechamento prolongado de escolas.
Os senhores dizem que, historicamente, a retomada da vida normal orienta o fim de uma pandemia. Essa já é uma realidade em vários países. Acreditam que é mesmo a hora de as principais restrições serem abandonadas?
DR - As coisas parecem estar indo nessa direção. Mas é notavelmente desigual. Por exemplo, moro em um país europeu que, recentemente, suspendeu todas as medidas [de proteção] ao coronavírus. Mais e mais países europeus anunciaram a necessidade de voltar ao normal e começar a viver com o vírus.
No entanto, minha universidade nos Estados Unidos recentemente ordenou [doses de] reforço para alunos e funcionários e continua a exigir máscaras, testes semanais e ainda realiza muitas reuniões virtualmente.
É difícil ver como chegarão ao "fim", porque eles parecem que esperam a eliminação do vírus, e isso não vai acontecer. Em algum momento eles terão que aceitar que temos que conviver com a Covid, as coisas vão voltar ao normal, e a pandemia vai acabar para eles também. Mas no momento não está claro quando isso vai acontecer.
Peter Doshi - Se há um desejo de retorno à normalidade, então sim [as principais restrições devem ser abandonadas].
Nem todos concordam com a afirmação dos senhores de que não existem métricas para identificar o fim da pandemia. Citam, por exemplo, as taxas de internação ou a proporção de testes positivos. Essas métricas não são válidas? Por quê?
DR - Tentar estabelecer uma métrica epidemiológica que possa nos dizer quando a pandemia acabou sugere que o fim de um evento social, como uma pandemia, deve ser determinado puramente por um único grupo de especialistas. Mas mesmo esses especialistas não concordam sobre qual deve ser essa métrica!
Alguns ainda acreditam que a pandemia não deve terminar até que eliminemos o vírus. Também vemos esse problema historicamente, com diferentes pandemias recebendo diferentes datas de "fim".
Mesmo mais de um século após a gripe espanhola [iniciada em 1918], há um desacordo considerável sobre qual "onda" foi a última da pandemia. Em nosso artigo, queríamos ressaltar que essa ideia de atingirmos algum número mágico e depois declarar o fim da pandemia e voltar ao normal é mais coisa de Hollywood do que de história.
Nunca aconteceu assim. Pelo menos, não com um vírus respiratório endêmico. Como essas coisas se tornam endêmicas, afetando a todos nós, cabe a nós determinar quando queremos voltar ao normal. Reduzir isso a um número não é possível.
PD - Concordo com David. Acrescento apenas que, se usássemos algumas dessas métricas propostas na pergunta, a pandemia teria "acabado" várias vezes nos últimos dois anos.
Os senhores dizem que no século passado o fim de pandemias respiratórias nunca foi claro. Mas, dado o fato de que tudo é novo na Covid, é razoável comparar a situação atual com o que aconteceu no passado distante?
DR - Em suas linhas gerais, a atual pandemia não é radicalmente diferente das pandemias anteriores de gripe. A Covid-19 é muito menos mortal do que a gripe espanhola e mais mortal do que as pandemias de 1957, 1968 e 2009. Dito isso, a Covid-19 também é menos mortal para os jovens, enquanto as pandemias de gripe são sempre particularmente mortais entre os novos.
A grande diferença histórica é que desta vez, com a Covid, pensamos que poderíamos fazer o vírus desaparecer ou ficar sob nosso controle. Como uma onda após outra onda e uma variante após outra variante deixaram claro, não podemos eliminar esse vírus respiratório.
Isso não significa que não devemos fazer nada. Mas muitos governos pandêmicos se comportaram como se pudessem eliminar o vírus por meio de bloqueios, fechamento de escolas, fechamento de fronteiras, trabalho em casa etc. Era totalmente previsível que o Sars-CoV-2 se tornaria outro de nossos patógenos sazonais endêmicos. Historicamente, é isso que acontece após pandemias como essa.
Então é preciso parar com a ideia de que, se fizermos tudo certo, o coronavírus desaparecerá?
PD - Sim, precisamos parar com a ideia de erradicar o vírus. Isso não aconteceu em epidemias anteriores de vírus respiratórios como influenza e coronavírus, e vimos que não acontecerá para a Covid-19.
Essas declarações não acabam servindo de munição para os negacionistas e contribuindo para que as pessoas baixem ainda mais a guarda em relação às medidas preventivas?
PD - Eu quero comentar o que você chama de "munição para os negacionistas". Eu acho que o jornalismo precisa se afastar dessa noção de que o mundo é tão simples quanto a verdade versus desinformação e negação. Tem muito mais cinza. Há nuances. Existem coisas como opiniões minoritárias bem informadas.
No artigo, os senhores também questionam a disponibilidade de dados nesta pandemia como algo negativo. O que querem dizer exatamente com isso?
DR - Durante a Covid, o principal argumento tem sido que ter mais dados é sempre melhor. Mas isso é realmente verdadeiro? Dados sobre internações e mortes por Covid são obviamente importantes para gerenciar a crise sanitária. Mas outros dados, como os casos diários exibidos nos painéis da Covid-19, podem criar mais problemas do que resolvê-los.
Por que, por exemplo, contamos e relatamos infecções assintomáticas da mesma forma que as gravemente hospitalizadas? Essas coisas são realmente iguais? Um caso de Covid em um lar de idosos é comparável a um caso de Covid em uma escola primária? A falha em distinguir esses pontos nos dados piorou a pandemia, alimentando o pânico público e promovendo ilusões de controle.
Os senhores realmente consideram razoável sugerir que a melhor maneira de lidar com isso seria eliminar a informação? Isso não daria mais espaço às notícias falsas?
DR - Certamente não pediríamos a eliminação de informações. Não é que os dados sejam totalmente irrelevantes para tomar decisões sobre a pandemia, mas sim que eles, por si só, não podem nos dizer quando a pandemia acabou.
Os dados visualizados em painéis tornaram-se semelhantes ao Oráculo de Delfos [local de profecias na Grécia antiga], como se o "fim" simplesmente se anunciasse para nós quando a curva de infecção descesse e permanecesse baixa. Dado que a história deixa muito claro que a curva nunca permanecerá baixa, achamos importante chamar a atenção para essa adoração sem precedentes aos dados.
No Brasil, cerca de 600 pessoas ainda morrem todos os dias por conta do coronavírus. Mais de 650 mil já morreram. Como voltar a uma vida normal com esses números?
DR - Um dos pontos-chaves que destacamos no artigo é que as pandemias nunca terminam da mesma maneira e ao mesmo tempo em todos os lugares. Como a pandemia terminará no Brasil dependerá de como a sociedade brasileira continuará respondendo ao vírus nos próximos meses e anos.