Que o cuidado dos filhos tem um peso desproporcional nas mulheres, afetando o percurso profissional delas, já é sabido --não à toa, o Nobel de Economia em 2023 foi para a professora de Harvard, Claudia Goldin, por estudos que expõem esse problema.
O reconhecimento desse desequilíbrio pode ser o primeiro passo para a igualdade de gênero no trabalho, mas não é suficiente: faltam ações concretas, segundo cientistas que estudam o tema há anos.
Na última semana, o caso da professora do curso de Humanidades da UFABC (Universidade Federal do ABC), Maria Caramez Carlotto, que teve sua bolsa de produtividade do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) negada, repercutiu devido ao caráter discriminatório do parecer.
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Na carta, que é anônima, o avaliador disse que "as suas gestações [provavelmente] atrapalharam essas iniciativas [pós-doutorado no exterior], o que poderá ser compensado no futuro".
À reportagem a pesquisadora disse que ficou "incrédula e indignada" ao ler o trecho principalmente porque era um edital sensível a essa questão, e mesmo assim ela sofreu uma violência de gênero. "Fiquei chocada porque, em 2023, depois de tudo que a gente avançou, vem um parecer destes, sem filtro."
O órgão publicou uma nota de esclarecimento afirmando lamentar o ocorrido, mas justificando que a carta era de um consultor externo e que "instruirá seu corpo de pareceristas para maior atenção".
Mesmo admitindo que houve uma falha no procedimento, a entidade ainda tem um caminho longo para trilhar quando o assunto é equidade de gênero.
O mecanismo de bolsa de produtividade (PQ) do CNPq funciona como um bônus para aqueles pesquisadores ou pesquisadoras que se destacam em suas respectivas áreas de conhecimento. A avaliação segue diversos critérios, incluindo a quantidade de artigos científicos produzidos nos últimos anos.
Há hoje 16.108 bolsistas dessa modalidade no país, de um total de 109.548 docentes, segundo dados de pós-graduação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, ligado ao Ministério da Educação), o que equivale a menos de 15% deles. Excluindo os bolsistas sêniores, não incluídos na análise, restam 15.850. Destes, 5.642 são mulheres (35,6%), e os 10.208 restantes (66,4%) são homens.
Os dados, de até julho de 2023, foram levantados pelo Parent in Science da base do CNPq por meio da plataforma Fala.br. Vendo a distribuição por área, as exatas e engenharias concentram o menor número de mulheres (por volta de 20%), enquanto saúde e linguística, letras e artes têm as maiores taxas (mais de 50%).
Para Fernanda Staniscuaski, bióloga e fundadora do Parent in Science, as mulheres são impactadas em sua produtividade científica na maternidade, e faltam ações concretas para lidar com isso, como criar uma política institucional a inclusão da cláusula de maternidade e parentalidade nos editais.
"As pessoas confundem equidade, de avaliar da mesma maneira, com igualdade. A gente tem hoje um terço dos comitês de área do CNPq, que avaliam os bolsistas no país, com cláusulas que abordam a maternidade nos editais científicos. Fica a cargo dos comitês avaliadores incluir ou não, quando devia ser uma decisão de cima para baixo", diz.
Para a antropóloga e professora da UnB (Universidade de Brasília), Débora Diniz, é preciso olhar para esses dados de maternidade na ciência e criar diretrizes claras.
"O que fazer com essa informação? Se é esperado tanto de publicação [para um pesquisador], então é tanto menos? Pode se esperar, por exemplo, que pesquisadoras que são mães façam estágio no exterior tendo tido filhos? Essa é, na verdade, uma falsa pergunta", reflete a pesquisadora.
Carlotto disse que pretende recorrer da decisão, algo que é direito de todos os pesquisadores que têm um pedido negado, mas principalmente porque não sente que houve o julgamento técnico adequado, já que seu projeto foi elogiado e avaliado positivamente pelo primeiro parecerista.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, a assessoria de imprensa do CNPq informou, por e-mail, que os pareceristas são "especialistas de alto nível em suas respectivas áreas de conhecimento, em geral bolsistas" do órgão e que "espera-se que todos os pareceristas, assim como os membros dos comitês de área, tenham suas condutas regidas pelos preceitos legais [...], e não sendo compatíveis com qualquer forma de discriminação". Disseram também que vão elaborar um Código de Conduta Ético específico para os pareceristas.
Staniscuaski vê avanços nos últimos anos, especialmente no que diz respeito à criação de secretarias voltadas para tratar as questões de diversidade e inclusão na ciência, mas reclama da demora para a implementação das políticas de promoção da igualdade.
"Existe sempre uma justificativa de que o julgamento [dos editais] é na produção científica, que é um indicativo numérico. Mas é por isso mesmo que precisamos desafiar esse conceito, que no caso dos bolsistas PQ é muito forte, porque quem julga também é bolsista", disse.
Segundo Diniz, dezenas de mulheres relataram a ela ter recebido pareceres similares ao de Carlotto --o que mostra que o problema é estrutural, e não um caso isolado. "Faltou um treinamento, e eu não estou dizendo que é a solução para discriminação, mas é um dos passos obrigatórios para o processo de reflexão", completa.
A física e professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Márcia Barbosa, explica que esse é mais um exemplo de dezenas que são colhidos e demonstrados em estudos científicos comprovando a desigualdade de gênero na ciência.
Os números, assim, falam por si para exemplificar o chamado "efeito tesoura", onde a cada nível na carreira científica o número de mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+ cai --elas são cerca de 50%, até mais, entre as estudantes de graduação, mas chegam a menos de 20% em posições de topo.
As causas são múltiplas: desde a falta de oportunidades, passando pelos vieses dos avaliadores --conscientes ou não--, o peso do trabalho doméstico e até o dano psicológico, moral e às vezes por assédio sofrido, levando muitas pessoas desses grupos a desistir da pesquisa.
Segundo ela, o parecer recebido por Carlotto reflete os preconceitos ainda presentes na sociedade e que precisam ser trabalhados com políticas, mas também educação. Ela cita um estudo seu e de sua aluna que apontou que as mulheres na física fazem menos solicitações de bolsas PQ em relação à sua presença na pós-graduação.
Outro estudo, também de sua autoria, mostra que pelo menos metade das pesquisadoras na UFRGS já sofreu assédio moral. "Não penso que aqui é diferente de outras universidades no país", diz. Por isso, defende a criação de códigos de ética e conduta entre as sociedades científicas e universidades.
Para Diniz, por ser um órgão científico, o CNPq deve se basear em evidências para criar políticas, e estas deixam claro a disparidade de gênero. "Como toda medida, ela vai ter custos, desde financeiros até políticos, nas estruturas de poder, porque mexe com os privilégios de quem também é julgador", diz.