No livro "As Vantagens de ser Invisível", o personagem Charles indaga Bill: "por que as pessoas boas sempre escolhem as pessoas erradas para namorar?"; ao que o amigo, parecendo entender do assunto, responde: "nós aceitamos o amor que achamos merecer".
A resposta de Bill exprime o sentimento de quem já passou por um relacionamento abusivo. Romantizado por filmes e séries, esse tipo de relacionamento nunca foi tão debatido como atualmente. Ainda que no Brasil tenhamos casos como o da menina Eloá Pimentel, que em 2008 foi feita refém e assassinada pelo então namorado Lindemberg Alves, o tema só começou a ser debatido mesmo em meados de 2015, por meio de depoimentos em redes sociais e coletivos feministas.
Segundo o psicólogo e especialista em saúde mental Filipe Martin Oliveira, o relacionamento abusivo se caracteriza por restrições. Ações como "não deixar sair com os amigos, vigiar o celular do outro, controlar as redes sociais para ver com quem o outro está conversando, botar para baixo, diminuir a pessoa, além da agressão física", são sinais de uma relação abusiva.
Ao lado de amigos, Filipe integra o Chá com Biscoito, projeto sem fins lucrativos que trata de temas ainda pouco debatidos e que precisam ser esclarecidos para a comunidade externa. A pauta do relacionamento abusivo é uma delas.
Juliana Cestaro, estudante de psicologia que também integra o projeto, defende que, no caso da mulher, o abuso realizado pelo homem ainda é considerado comum, uma herança de uma sociedade construída a partir do prisma machista. "Geralmente a gente ouve ‘ele me proíbe de usar tal roupa’ ou ‘não me deixa sair com os amigos mas pelo menos não me bate’", relata.
Para Filipe, a violência física é o último estágio do relacionamento abusivo, é como se fosse a "gota d'água" da situação. "Primeiro cerceia a liberdade, depois corta contato com amigos, no outro dia fere a autoestima e por fim agride fisicamente."
Além disso, devido ao fato de o abuso se restringir, na maioria das vezes, ao âmbito psicológico, as pessoas costumam achar que a relação é normal, que os desmandos fazem parte do relacionamento. Afinal, a saúde mental da vítima nem sempre se mostra visível, ao contrário dos hematomas da agressão física.
Série
Há muitas dúvidas a respeito de relacionamento abusivo. Por isso, a partir de hoje e nas próximas três sextas-feiras, você vai acompanhar histórias a respeito do tema no Portal Bonde. São histórias de pessoas comuns, como professores, servidores públicos e estudantes, para que você compreenda que o abuso não escolhe cor, classe social e gênero. É uma série com fins de conscientização.
A história desta sexta-feira (9) é a da estudante A. A., de 20 anos. "O pior para mim era o terror psicológico que ele fazia, falando que ia se matar, que ia ser a última vez que ia ver ele vivo, tentando se jogar da janela do meu apartamento e colocando uma faca no pescoço", conta.
Durante pouco mais de um ano, A. A., que conheceu o ex-namorado por intermédio de amigos, passou por situações como a descrita acima. No começo do relacionamento, no entanto, o problema se restringia ao ciúme. "Ele tinha ciúmes até do meu passado. Ciúmes de tudo e de todos. Sempre fui uma pessoa que ama dançar e isso incomodava ele demais, ver outras pessoas me olhando, principalmente homens."
Com o tempo, o ciúme intensificou um quadro de depressão que A. A. já vivenciava. "[O relacionamento] fazia eu me sentir muito mal comigo mesma. Ele me pressionava demais, principalmente em relação a sexo. Sofri abuso sexual quando era criança e isso impactava minha vida sexual. Ainda que tenha ficado do meu lado [em relação à depressão], já que era a única pessoa com quem conseguia me abrir, ele não conseguia entender tudo. Me sentia culpada por não ter tanta vontade e ainda ouvia coisas absurdas dele, como ‘se você não melhorar [da depressão] não vou mais ficar com você’, entre outras coisas relacionadas ao sexo."
Quando indagada por qual motivo não terminou a relação antes, a estudante conta que a depressão e a ausência dos amigos fizeram com que criasse uma forte dependência emocional do ex-namorado. "Como estava com depressão, na minha cabeça ele era a única pessoa que tinha e ele ajudou a alimentar essa ideia. Além disso, realmente acreditava quando ele dizia que ia mudar, ou pelo menos era o que queria acreditar, e assim fui levando, com os vários pedidos de perdão pelas ofensas, pelos abusos psicológicos. Na minha cabeça, um dia ele ia parar com isso."
A situação chegou ao limite quando começaram as agressões físicas, já que as psicológicas eram recorrentes. Ela conta que "era constantemente chamada de vagabunda, vadia, desgraçada". "Ele dava de dedo na minha cara, me empurrava frequentemente nas brigas, a ponto de eu bater o braço e ficar roxo. Além dos apertões na mão e nos braços quando queria me segurar."
Depois de um ano aceitando tal situação, A. A. terminou o namoro. "Costumo falar que estava tão triste e cansada de tudo, que, por mais que tivesse algum sentimento envolvido, o peso que saiu das minhas costas e o alívio foram tão grandes que não sofri nada com isso. Segui a vida e inesperadamente conheci uma pessoa incrível, com quem tenho um relacionamento e que é completamente o oposto de tudo isso. [Com o novo namorado] realmente consigo ser feliz, é tudo simples e fácil."