O bairro carioca do Leblon voltou ao noticiário, e desta vez sem qualquer relação com a quarentena. Na noite de sexta-feira (25), um carro conversível rodava pelas ruas do bairro. Na direção, um homem, e, no banco traseiro, duas mulheres de biquíni dançando, mexendo no celular e trocando beijos animados.
Poderia ser só uma cena comum, em uma noite quente de uma cidade de praia, mas tudo acabou em pancadaria. A briga foi filmada e caiu na internet. No vídeo, além da animação do grupo é possível ver uma garrafa plástica voando em direção às mulheres.
Uma delas é atingida e rapidamente abandona o veículo, partindo em direção à mesa de um restaurante. Ela desfere um soco em uma mulher, volta para o carro, e é perseguida por um homem, que termina arrancando a parte de cima do seu biquíni.
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Em um stories no Instagram, a arquiteta Aline Cristina Silva afirmou que tomou a atitude de lançar a garrafa por causa de "cenas de atentado ao pudor" diante do restaurante em que jantava. A postagem foi apagada em seguida.
"Aquilo que infringe a lei deve ser coibido pelas devidas autoridades, e só por elas. Quanto ao que está dentro da lei, é problema de cada um de nós. Ônus do convívio em sociedade", diz Leticia Bahia, psicóloga e coordenadora nacional do Girl Up Brasil, organização que empodera meninas adolescentes.
No caso da "barraco do Leblon", como o episódio vem sendo tratado, e em tantos outros que envolvem corpos femininos, a questão é entender por que ainda nos incomodamos tanto, como sociedade, com as condutas libertárias destas mulheres -incômodo este que, quando fora de controle, gera atitudes como a da arquiteta.
"O que me vem diante deste espanto e deste pudor todo é a maneira como a gente foi ensinado a não olhar para os nossos corpos, e como o fato de penalizarmos e punirmos quem está bem com seu corpo é uma forma clara de manter o controle", avalia Fernanda Ferrão, publicitária e professora na escola Maravilhosas Corpo de Baile.
Para ela, é preciso cuidado na hora de definir as motivações de Silva -já que o comportamento dos ocupantes do carro não constituía infração de uma lei, como ela alegou, e sim de um limite subjetivo ultrapassado, qual será o nome deste impulso?
"A palavra inveja entra como amostra do que a sociedade nos ensina, que as mulheres não se gostam. E isso nada mais é do que uma forma de nos controlar. Um grupo é muito mais difícil de ser controlado do que mulheres separadas. Entendo quando uma mulher diz que outra sente inveja. Não concordo, mas entendo de onde isso vem", diz.
"Existe um padrão cultural de compreender todo o universo íntimo, incluindo suas referências, à esfera privada. No caso das mulheres, essa régua sobe", entende Bahia. "Nós ainda valorizamos o feminino a partir de características como o recato, o pudor. Muita gente se sente ofendida quando confrontada com outras manifestações de feminilidade que não estão dentro dessas normas."
Para a professora Ferrão, quanto mais segura uma mulher está do seu próprio corpo, mais ela terá orgulho dele. "Mais eu vou mostrar para as pessoas que nada nem ninguém podem controlar o que é meu", entende.
"Julgar é aplicar nosso arcabouço de valores àquilo que se nos apresenta, algo que todos fazemos", explica Bahia. "Essa lente é continuamente construída a partir do que vemos e ouvimos, especialmente de nossas referências. A família costuma ter papel importante, assim como nossos amigos, nossa religião e os políticos em quem votamos".
E, se somos de fato uma sociedade em constante trabalho de desconstrução e aprendizado, estando assim sujeitos a olhar o outro com julgamento, Fernanda Ferrão propõe reflexão. "Sugiro um passo atrás sempre. A gente tem atitudes por impulso e não sabe de onde elas vêm. É importante refletir sobre as coisas", aconselha.
"Por que o corpo da outra mulher te incomoda tanto? O que ela muda na sua vida? É porque eu não tenho isso, porque não consigo isso? Porque eu gostaria de ter isso e não posso? Agir a esse respeito é difícil, então o primeiro passo é refletir e ler sobre o assunto."