Quantas vezes nos últimos tempos você se viu vestindo a melhor roupa para ficar em casa, dançar sozinho ou entrar numa live? O isolamento social até aqui, de fato, parecia dominado pela área secreta do armário, a das camisetas puídas, dos moletons e dos chamados tons pastel. Mas a cultura pop, liderada pela moda, quer mandar às favas essa depressão estética.
Nos últimos desfiles em Nova York, onde a pandemia? Ainda bloqueia o contato íntimo, e também em Londres, sede das experimentações ?Estéticas do circuito global, estilistas deram uma descarga elétrica, de rosas-choque, verdes ácidos e azuis iluminados, além de tecidos reluzentes e estampas antes relegadas ao convívio com a naftalina.
Virtuais ou presenciais, as apresentações lançaram imagens de uma vida feliz, ainda que descolada da realidade, ancorada em caixas de tarja preta. Tom Ford, o estilista da moda mais sensual do calendário americano, pôs suas duas modelos para dançar montadíssimas em "animal prints", das zebras aos leopardos -a popular oncinha, entre nós.
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"Essa coleção é a esperança de um tempo mais feliz. Um momento ainda casual no que se refere è moda, mas um ?momento em que precisamos de roupas que nos façam sorrir", disse Ford sobre o desfile, que vai ao coração dos anos 1970 para buscar umas flores.
A aposta não deixa de ser arriscada diante da queda na procura por esses itens. Na marca paulista Amaro, o baque animalesco chegou a 55% no auge da pandemia, um número semelhante ao das pesquisas da consultoria Compre & Confie sobre as vendas recentes de vestidos e saias.
A emergência para o caixa, é claro, está em extirpar logo esse mau humor -e com isso grifes querem lembrar que se vestir é um antídoto para ele.
O século 20 ensinou. Entre as décadas de 1970 e 1980, a moda, já recuperada da escassez da Segunda Guerra e ainda intocada pela epidemia da Aids, que ceifou a alegria de volumes, cartelas de cor e padrões gráficos, ditou que se vestir era quase um evento.
Não por menos, a atual temporada, e os lançamentos das divas pop, recuperam esse ?espaço mais feliz da história.
Na onda da popstar britânica Dua Lipa, o tie-dye, a técnica de manchar tecidos difundida pelos hippies e recuperada por jovens no TikTok, colou nos desfiles. A boca de sino, por sua vez, abriu as pernas na apresentação caseira de Victoria Beckham, em Londres, enquanto o drama dos chapelões e vestidos de festa deu o tom da performance do estilista Christian Siriano.
No desfile dele, que fechou a temporada americana, uma modelo mascarada e pronta para a festa se jogou na piscina, como se procurasse, no isolamento, um evento digno.
Christopher Kane, em Londres, procurou no ato de pintar o motivo que levou sua modelo descabelada a vestir pinceladas de tinta, e, na mesma cidade, Roksanda Ilincic pôs amigos num apartamento para dançar usando seus looks.
Tudo parece meio absurdo, mas é para ser. O absurdismo, nesse contexto, serve de motor para as imagens que o entretenimento passa por meio dos estetas mais atentos. Ou seja, se a realidade não oferece o o que se busca, faça uma revolta, mude tudo e sobreviva.
A absurdista de primeira hora na pandemia foi Beyoncé, que no filme "Black Is King" modela com afrofuturismo um mundo estampado, glamoroso e vivo para a comunidade negra. Na semana passada, Lady Gaga esquentou o debate no clipe de "911", usando moda e imagem absurdas na mesma medida para responder ao estado mental e político dos Estados Unidos.
Ela pesa as referências ao cinema da Armênia para apontar a matança de 1915 naquele país pelas mãos do Império Otomano, uma alfinetada no presidente Donald Trump que se recusou a classificar o massacre como um genocídio
Também põe em primeiro plano a agonia das pessoas que batem sem rumo a cabeça no travesseiro, e, no momento mais memorável do clipe, ela se mostra entre um homem com a corda na mão e uma mulher com roupa papal. Na cabeça, a cantora ostenta um acessório de Alexander McQueen, estilista e amigo pessoal que viu no suicídio a saída para sua depressão.
A moda costura todas essas imagens com roupas extravagantes criadas por uma série de estilistas jovens dedicados a resgatar um espírito mais político no vestuário.
Não à toa, em Nova York, do luxo de Siriano à pegada urbana da marca Pyer Moss, a palavra "vote" está impressa em várias das propostas desta absurda temporada pré-eleitoral nos Estados Unidos.
O espírito de mudança resgata o humor político dos anos 1970, uma época de lutas por direitos civis nos Estados Unidos, que também aparece na TV agora na recém-lançada "Mrs. America", série exibida pela Fox Premium no Brasil.
O guarda-roupa da figurinista Bina Daigeler, cotada a uma indicação ao Oscar por seu trabalho em "Mulan", da Disney, poderia ocupar com facilidade uma das passarelas virtuais das semanas de moda.
A construção das personagens que lutam pela igualdade de gênero aparece em contraste com as conservadoras de sua época, num claro embate de ideias que destila os tempos atuais expostos nas ruas e nos desfiles recentes.
"A moda identifica politicamente. As antifeministas usavam saias em 'A', saltos pequenos e blusas fechadas, -sempre uma roupa pastel, como uma autêntica dona de casa. Enquanto do outro lado, liberal, há estampas, cor e calças jeans", afirma Daigeler.
Essas duas correntes estéticas foram motor do ciclo de tendências dos últimos anos, com a ascensão de uma classe de consumidoras que prefere o "modest dressing", de saia mídi, braços cobertos e coloração apagada, em oposição à que prefere a exposição da pele e a exuberância gráfica.
São dois mundos antagônicos do século passado, mas que agora devem extrapolar o sentido político e de moralidade nos costumes para -definir como cada um pretende reagir ao desânimo, se com uma dose de ousadia ou um conformado bege pastel.