A advogada Viviane Girardi, 50, chega ao comando da instituição no mesmo ano em que outro fato inédito ocorre na entidade: é a primeira vez que o conselho da associação, com cerca de 80 mil filiados, terá paridade de gênero entre seus membros (11 homens e 10 mulheres).
Em entrevista à reportagem, Viviane diz que a pandemia da Covid-19 afetou de forma desigual a mulher advogada e mostra que a igualdade de gênero também precisa chegar à divisão das tarefas dentro de casa, para tirar a sobrecarga que afeta as mulheres e permitir que elas alcancem os postos de comando de escritórios e empresas.
A advogada defende a volta das práticas presenciais no Judiciário após a crise de saúde e afirma que o uso de inteligência artificial na Justiça deve ser feito com reservas, pois as decisões judiciais não podem ser baseadas apenas em estatísticas e parâmetros internos de sistemas digitais sobre os quais não haja transparência.
Especialista na área de família e sucessões, ela conta que, na pandemia, aumentou a procura das pessoas por elaboração de testamentos e regularização das situações de relacionamento, seja no reconhecimento formal das uniões estáveis, seja nos chamados "contratos de namoro".
Pergunta - Quais foram os principais efeitos da pandemia da Covid-19 para a advocacia?
Viviane Girardi - Num primeiro momento, nós tivemos a paralisação completa das atividades da advocacia. Em maio, os processos digitais voltaram a ter andamento. A digitalização dos processos viabilizou que não se paralisassem os serviços.
A advocacia é formada por muitos advogados autônomos, a questão é que você trabalha em casa, mas o acesso ao cliente ficou dificultado. A classe sentiu economicamente, mas não sei medir exatamente qual a extensão disso.
As mulheres foram bastante penalizadas, porque a pandemia de fato não impactou de forma igual os homens e as mulheres.
As mulheres advogadas estavam mais sobrecarregadas do que os advogados homens em razão das questões ainda resultantes de uma sociedade que vê uma divisão de papéis, como se a casa ainda fosse um ambiente exclusivamente feminino, e não um ambiente a ser compartilhado e dividido.
O fato de as crianças estarem em casa, e não na escola, exigiu também que os escritórios tivessem que ter um olhar atento para isso, para respeitar essa mulher advogada, o que nem sempre aconteceu.
A grave situação de saúde pública acelerou o emprego da tecnologia no direito. Quais tipos de uso devem permanecer e quais devem ter utilização diminuída quando a pandemia passar?
VG - Por exemplo, na área criminal e de família, as audiências devem voltar para o formato físico, porque o contato é primordial para a sensibilidade do juiz e das partes.
Agora, ganhamos com a aceleração da digitalização dos processos. E eventualmente um ou outro advogado que tenha interesse em despachar com um juiz ou desembargador, pode se valer da tecnologia [por meio de videoconferência]. É uma possibilidade para quem não é da capital. Mas deve ser dada a faculdade ao advogado, não pode ser uma imposição do tribunal.
O CNJ criou o projeto 'Juízo 100% Digital', que prevê a realização de todos atos processuais por meio eletrônico e pela internet. A adesão a esse formato é optativa. Qual é a sua avaliação sobre esse projeto?
VG - Esse projeto tem que ser implantado de forma muito cautelosa, porque impacta na linguagem da Justiça, nos atos processuais. Só pode se tornar uma realidade se for dada à parte a possibilidade de escolher se ela quer aderir. O direito ainda precisa do contato, nas audiências, nos julgamentos, essa troca ainda precisa acontecer presencialmente.
É possível, por exemplo, que essas varas digitais sejam úteis para processos que envolvam matéria de direito ou julgamento de questões de massa. Nesses casos elas podem realmente acelerar o processamento dos feitos.
Mas ainda aquelas ações que demandam direitos mais sensíveis, ou a produção de provas mais elaborada, isso precisa realmente do julgamento presencial.
Como o sra. avalia o uso da inteligência artificial no sistema judicial?
VG - Com muita reserva. Se num primeiro momento a inteligência artificial pode fazer uma colaboração na filtragem, se ela não for bem parametrizada, se não for feita com muita cautela e metodologia, ela pode começar a resultar em decisões que certamente não seriam tomadas por um julgador.
Os julgamentos não podem ser parametrizados só em cima de estatísticas, de critérios que muitas vezes ficam fechados no sistema da inteligência artificial.
A implementação da inteligência artificial exige comitês de pesquisa e de vigilância, em que os parâmetros sejam revisitados a todo momento, e é necessário sobretudo que haja um controle sobre quem vai formular esses parâmetros.
Hoje a inteligência artificial está sendo usada mais como filtro, por exemplo, de acesso dos processos aos tribunais superiores, há alguns parâmetros lá que também geram distorções.
Ela é uma ferramenta útil, que pode ajudar nesse contingente enorme de processos que nós temos, mas ela deve ser uma ferramenta contida e vigiada constantemente, porque ela pode realmente gerar distorções e com isso produzir injustiças.
A sra. é especializada em direito de família e sucessões. Como a pandemia afetou essa área da Justiça?
VG - As pessoas entraram muito em contato com a possibilidade da morte. A morte se tornou um fato muito presente. Então elas sentiram uma necessidade de organizar inclusive a própria vida patrimonial, pensar no seus herdeiros. Senti muito isso no escritório. Pessoas que tinham muito medo do testamento, por exemplo, passaram a organizar isso.
As pessoas que tinham relações informais passaram a pensar nas relações de maneira mais organizada, começaram a lidar com a hipótese da falta. Passaram a regularizar as uniões estáveis e os contratos de namoro.
No campo de família, tivemos dois movimentos. Muitas famílias se reforçaram. A dificuldade da pandemia se impôs de maneira maior que os problemas que algumas famílias enfrentavam. Em outras, ao contrário, a convivência na pandemia acentuou a violência doméstica.
A sra. mencionou contratos de namoro. O que são esses contratos?
VG - O contrato de namoro é para as pessoas que estão num relacionamento um pouco mais extenso, que não é um relacionamento ocasional, mas que também não é uma união estável. Serve justamente para não configurar uma união estável, para não gerar efeitos patrimoniais. As partes querem que a relação seja compreendida juridicamente como um namoro, na qual a finalidade não é de constituição de família.
Por que demorou mais de 70 anos para que a AASP tivesse uma mulher na sua presidência?
VG - A AASP reflete um pouco do que foi a sociedade brasileira até agora, que só mais recentemente consegue dar uma certa paridade para as mulheres, que ainda não é plena.
Nos últimos anos, a AASP sentiu necessidade de dar mais representatividade para as associadas, e nosso conselho diretor hoje tem paridade entre homens e mulheres. Essa é uma conquista muito grande, foi uma construção ao longo dos últimos anos.
Como a sra. avalia o tema do teto de vidro para as mulheres na advocacia?
VG - Esse tema é presente porque ainda a estrutura social tributa muitas atividades para as mulheres.
O esforço que a mulher faz para chegar aos cargos de poder ainda é maior, é dobrado em relação ao homem. Seja porque ela acumula funções que os homens não acumulam, seja porque ainda nossa sociedade tem dificuldade em achar natural que as mulheres ocupem os cargos de poder.
Há uma questão ainda de que a maternidade também é vista como uma atribuição exclusivamente da mulher. Não estou falando da gestação, estou falando da maternidade no sentido do cuidado dos filhos e tudo mais.
Sem dúvida, isso pesa sobre a carreira das mulheres. Então, em determinado momento, a carreira delas muitas vezes estaciona, porque não têm um aparato de apoio, uma estrutura de Estado, de creche, mesmo o pai dentro da casa, que possibilitem que ela tenha disponibilidade para os cargos de chefia. O machismo ainda está entranhado na cultura brasileira.
Como essa situação pode ser revertida?
VG - Primeiro, com políticas públicas que deem amparo para as atividades. Também com uma mudança de mentalidade no sentido de que a gente não precisa ter os lugares demarcados, "isso é atividade de mulher, isso é atividade de homem".
A mulher conseguiu ir para a vida pública, conseguiu trabalhar em paridade com o homem. A gente ainda precisa que essa igualdade venha também para dentro da casa.
A depender da condição social da mulher, obviamente os aparelhos de Estado, com creches, com suporte para os filhos, acho que são um fator relevante. E as políticas dentro dos próprios escritórios, que têm que entender que trazer essa característica da mulher para as posições de gestão impacta de maneira positiva nos resultados.
As mulheres têm uma contribuição diferente a dar, é preciso que isso tenha espaço para acontecer, isso tem que acontecer de maneira mais efetiva.
A Polícia Federal investiga um caso em que há a suspeita de que uma ex-conselheira da OAB-SP tenha pedido R$ 250 mil para atuar no arquivamento de processos no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB de São Paulo. O caso trouxe à tona a discussão sobre como a classe dos advogados deve fiscalizar a atuação de seus membros. Como evitar o envolvimento de advogados em condutas criminosas?
VG - O problema todo está na base, na formação. As faculdades precisam ter um olhar mais qualificado para a formação ética dos advogados.
Na classe dos advogados, certamente os desvios são muito menores que as condutas dos bons profissionais. Os desvios devem ser tratados segundos os parâmetros que a lei dá para essas situações. Há mecanismos para isso, o Tribunal de Ética da OAB é um deles, os inquéritos são para isso.
O ano foi marcado por muita tensão entre os Poderes. A sra. vê riscos ao Estado democrático de Direito?
VG - Não. Na democracia brasileira as instituições são estáveis. Há um momento ou outro de atrito, mas eles se acomodam. Há um inconformismo, uma insatisfação que possa acontecer de lado a lado, mas as instituições são fortes o suficiente para a preservação da Constituição e do Estado democrático de Direito. Temos já maturidade para isso.
RAIO-X
Viviane Girardi, 50
Eleita presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), toma posse em 1º de janeiro. Graduada pela PUC do Paraná, é doutora em direito civil pela USP, mestre em direito civil pela Universidade Federal do Paraná e especialista em direito civil pela Universidade de Camerino, na Itália. Especialista em direito de família e sucessões, é sócia do escritório Girardi Sociedade de Advogados.