Quadrinhos

Will Eisner, essencial

06 jan 2005 às 11:00


Will Eisner morreu. Difícil acreditar, principalmente quando todos já estavam mal-acostumados com a presença de uma gênio vivo. Stan Lee e Jack Kirby, ao lado de Jerry Siegel, Joe Shuster e Bob Kane, mostraram como fabricar heróis. Crumb ensinou como transformar o conteúdo e utilizá-lo como uma arma contra a comodidade e a pobreza de espírito. Art Spiegelman comprovou que a nona arte pode ser considerada literatura também. Mas foi Eisner quem experimentou, derrubou, reconstruiu, modelou e revolucionou a linguagem dos quadrinhos. Nada mais justo enumerar apenas algumas razões para comprovar isso.

The Spirit - Nenhuma outra obra conseguiu penetrar com tanta facilidade em todos os meios, agradando desde crianças até os mais exigentes dos círculos intelectuais. Escrito e desenhado pelo mesmo autor, o que dificilmente acontecia na época, o detetive conhecido como ''The Spirit'' chegou a cerca de 5 milhões de pessoas de 1941 a 1952, nas tiras dos jornais. Eisner já brincava com a linguagem na apresentação das histórias -sempre com diagramação inovadora e grafismos nos créditos- e conseguia mesclar o cartum com traços realistas.


Um Contrato com Deus e Outras Histórias do Cortiço - Lançada em 1978, a obra padronizou o que hoje conhecemos como ''graphic novels''. Se muitos ainda torciam o nariz para os quadrinhos, foi com esse volume que Eisner elevou a linguagem ao status de arte e derrubou a idéia de que ''gibis'' são para crianças. Neste álbum, o artista mergulha no drama do cotidiano de várias pessoas com uma narrativa gráfica espetacular: sequências verticais nunca antes feitas com tanta perfeição; composição com vários planos de ação e enquadramento único, só possível de ser feito na arte sequencial.


O Edifício - Tudo o que Eisner tinha experimentado em ''Contrato com Deus'' acabou culminado nesta obra, que conta a vida e a morte de um edifício através de quatro personagens. Aqui, o artista usou uma narrativa linear mas sem deixar de lado as ''brincadeiras'' com a forma. O álbum, por ser mais acessível para leigos -e também bastante verossímil para quem mora nos centros urbanos brasileiros-, acabou caindo no gosto popular e até mesmo tornou-se peça de teatro nacional, assim como ''Um Contrato com Deus''.


No Coração da Tempestade - Todas as obras de Eisner carregam um pouco de sua experiência pessoal com o preconceito e a guerra, já que o autor é filho de judeus que mudaram para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Porém, nenhuma delas é tão autobiográfica quanto ''No Coração da Tempestade'', que narra sua chegada à América e os primeiros dias diante do anti-semitismo. Talvez por se tratar de lembranças da infância, Eisner fez questão de deixar nas páginas um retrato de dor e melancolia -com o uso de painéis negros e sem requadros-, além de confusão (muitas vezes várias imagens estão ligadas sem uma explicação aparente). No entanto, sua sensibilidade torna esse relato textual numa experiência gráfica tangível e sem precedentes.


A Vizinhança: Avenida Dropsie - Já numa fase mais recente, em 1995, Eisner mesclou a forma autobiográfica de narrar histórias com sua visão incomum das pessoas: o autor sempre observou uma comunidade através de suas raízes. E é isso que ele faz novamente. Disseca o que há por trás de uma cidade, através de dramas pessoais, da ganância, do escrúpulo e do instinto de sobrevivência do ser humano.


Pelo menos mais uma dúzia de trabalhos ficaram de fora da lista essencial, como ''Quadrinhos e Arte Sequencial'', ''O Nome do Jogo'', ''O Último Dia no Vietnã'' e o tão aguardado ''Narrativas Gráficas'', que deve sair este ano pela editora Devir. Sem contar suas últimas obras, ''Fagin, the Jew'' e ''The Plot'', que ainda não foram publicadas nos Estados Unidos, e uma biografia autorizada, a ser lançada pela Dark Horse, em julho, com o título ''Will Eisner: A Spirited Life''.

Eisner nasceu em 1917 e morreu na terça-feira, dia 3 de janeiro deste ano, por problemas decorrentes de uma cirurgia no coração. Mas isso não aconteceu para os quadrinhos. O autor já era imortal décadas antes de completar seus 87 anos e nunca deixará de estar presente em cada traço e página virada de uma história em quadrinhos.


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