Quadrinhos

O Gênesis, segundo Crumb

14 dez 2009 às 16:57

Artista que revolucionou os quadrinhos recupera o texto original da Bíblia em um dos maiores lançamentos do ano

Curitiba - Robert Crumb já foi underground, liderou a Geração Beat nos quadrinhos, tocou em banda de jazz, mudou-se para a França, onde vive até hoje e, depois de seu último trabalho, chega ao status de um do maiores artistas contemporâneos, no auge de sua forma. Assim como foi Will Eisner, Crumb é considerado pelos fãs como um gênio vivo. Especialmente após o lançamento de sua mais recente e ruidosa obra, a releitura do texto original do livro Gênesis, do Velho Testamento da Bíblia Sagrada.


Antes de mais nada, para os que chegaram agora e não sabem quem é Crumb, o cara, com 66 anos, foi uma das figuras mais importantes para o cenário alternativo dos quadrinhos e da cultura underground mundial. Em 1960, seus traços rebuscados, com arte-final aparentemente tosca, ia na contramão do mercado, a cada dia mais sedento por super-heróis, ficção científica e afins.


Suas primeiras histórias, de gibis artesanais da Zap Comix, com personagens como Fritz The Cat, procuravam um público mais adulto, com temas ligados a sexo e drogas, bem no estilo de vida da diversão perigosa divulgada pelos beatniks e seus herdeiros. O desenho ''feio'' para os padrões da indústria colocou-o como líder de uma geração de artistas da contracultura, de gente que via na iconoclastia o grito de liberdade da juventude.


Depois dessa fase inicial, a habilidade de Crumb só cresceu e ele popularizou uma série de obras e personagens, como Mr. Natural e ''American Splendor'', com Harvey Pekar. Com sua narrativa sempre irresistível e traços inconfundíveis, aliado a uma inteligência acima da média, principalmente com texto irônico e humor ácido, tornou-se uma figura pop e ícone contestador, chegou a ilutrar capa de disco de Janis Joplin e foi colaborador da revista The New Yorker.


Por isso tudo, ''Gênesis'' era aguardado por todos como o maior lançamento editorial de 2009 em todo o mundo. Mais. Pelos fãs radicais, o novo trabalho de Crumb seria uma forma iconoclasta de ver a Bíblia. Talvez cheia de ironia, de crítica política, social ou religiosa. Uma provocação.


''Gênesis, por Crumb'' não é nada disso. É um relato minucioso de um pesquisador detalhista e preciso, de um artista perfeccionista que entregou o melhor que podia por uma obra encomendada. Inicialmente, o artista faria somente o Paraíso. Mas, com um incentivo financeiro bem gordo, acabou aceitando fazer todo o Gênesis.


Crumb buscou em diversas fontes, especialmente na tradução de Robert Alter (''The Five Books of Moses'', de 2004), a história mais próxima do texto original. O resultado é uma grande história em quadrinhos, adaptação do maior clássico e best-seller de todos os tempos, a Bíblia. Ele transformou a narrativa original, por muitas vezes confusa -devido ao excessivo número de personagens, lugares, contradições, eventos ou mesmo por ''liberdades'' na tradução-, em uma empolgante aventura, de leitura fácil e linear.


Desde o Paraíso, com Adão e Eva; passando por Caim e Abel; Noé, Abraão e Isaac; Esaú e Jacó; e por aí vai, Crumb vai caracterizando com maestria cada um dos personagens e transformando a longa e delirante árvore genealógica do mundo em algo mais lógico, aceitável, terreno. Como o próprio autor diz, transformou a ''palavra de Deus'' nas ''palavras dos homens''. Tudo isso sem a ironia ou a crítica que os fãs radicais tanto queriam.


Crumb exibe sua melhor forma e mostra que mudou. Não é mais o escritor que adorava só rir dos outros, que se contentava em contestar e criticar. Não é mais ''apenas'' o talentoso ilustrador da contracultura. Ele mostra que é tudo isso e muito mais. É um artista maduro, que comprova que só se mantêm estáticos os pobres de espiríto.


TRADUÇÃO MANTEVE CONFUSÕES ORIGINAIS


Se para Crumb foi difícil traduzir coisas do hebraico e procurar traduções de outros pesquisadores, seria impossível editar o material no Brasil sem prestar atenção nesses detalhes. Por isso mesmo, Rogério de Campos, à frente da Conrad Editora, cuidou pessoalmente desse aspecto na versão nacional.


''É um texto que já tem várias traduções por aí, muitas bem-sucedidas. Mas quando começamos a mexer no texto, sentimos que tinha muitas coisinhas, muitos detalhes na tradução que fariam toda a diferença'', afirma Rogério. ''A Bíblia foi utilizada muitas vezes como ferramenta de evangelização e teve muito de seu texto simplificado de acordo com quem avaliou o que era mais importante ou não para sua tarefa.''


Assim como Crumb, Rogério seguiu o mesmo caminho, do texto original. ''O Crumb faz parte de um movimento de recuperação do texto original da Bíblia e seguimos por esse mesmo caminho na tradução'', diz. A tradução manteve até mesmo as inconsistências originais. ''O texto original traz uma série de confusões, incoerências e contradições. Por exemplo, em certo momento Esaú tem a mesma esposa com dois nomes diferentes. Nós mantivemos essas confusões porque faz parte do texto original.''


Para Rogério, o Gênesis de Crumb não é direcionado para os que buscam ''a verdade divina''. ''O livro de Crumb não foi pensado para quem busca na Bíblia a verdade, a busca divina. Vai interessar àquele que busca o texto fundador.''


De acordo com o editor, até mesmo a confusa árvore genealógica original ficou mais atraente. ''O Crumb é um bom contandor de histórias. E um bom contador de histórias consegue fazer com que palavras desinteressantes, as mesmas, tornem-se interessantes. Até mesmo da lista genealógica do Gênesis ele consegue fazer uma coisa interessante.''


Rogério vê essa edição como o lançamento mais importante de 2009. ''Essa é uma edição que só pelo texto já teria tudo para ser interessante. Com o trabalho do Crumb, é o livro do ano. Curioso, um livro com mais de 2,5 mil anos é o livro do ano.''


SERVIÇO


- ''Gênesis'', por Robert Crumb, é lançamento da Conrad Editora. Tem 216 páginas em preto-e-branco, com capa dura e formato 21,5 x 28 cm, a R$ 49,90.


O material citado acima pode ser encontrado em Curitiba na Itiban Comic Shop (Av. Silva Jardim, 845). O telefone de lá é (41) 3232-5367.

A maior parte dos textos publicados nesta coluna foi publicada na Folha de Londrina, tanto na versão impressa quanto na virtual.


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