Dentro da santíssima trindade do rock, os Beatles e os Rolling Stones sempre mantiveram uma vantagem em relação a Elvis Presley, que fecha o triângulo: sua obra permanece tão comentada quanto conhecida, ao contrário do Rei, que segue bem mais falado do que propriamente ouvido. As duas bandas ganham nova chance de estabelecer maior distância nessa disputa, ao menos entre os fãs brasileiros, com o relançamento no país de itens bastante atrativos de seu catálogo.
A EMI põe nas lojas a versão em DVD do documentário "Anthology", que conta a história dos besouros, numa caixa com cinco discos – os quatro primeiros recompõem as dez horas das oito fitas em VHS lançadas originalmente em 1996, e um DVD extra traz 81 minutos adicionais, inéditos. Já a Universal relança no Brasil todo o seu catálogo dos Stones, que contempla justamente a fase mais interessante da banda de Jagger e Richards, o período compreendido entre 1964 e 1970.
Quem quiser ter acesso a tanta história vai ter que gastar um bocado. Os DVDs dos Beatles não serão vendidos separados, ao contrário da série em vídeo, e a caixa com cinco discos tem preço sugerido entre R$ 150 e R$ 200. Já os relançamentos dos Stones formam uma impressionante coleção de 22 discos. Os títulos do pacote são os mesmos de uma série relançada nos Estados Unidos no segundo semestre do ano passado, que trazia faixas remasterizadas em versão Super Áudio CD (SACD), a mesma tecnologia utilizada no relançamento de "Dark Side Of The Moon", do Pink Floyd, e mimos como a capa holográfica de "Their Satanic Majesties Request" (1967).
No caso dos Stones, a dica para economizar é simples: apenas dez dos CDs são trabalhos originais de estúdio, enquanto o restante do pacote é formado por coletâneas, compilações de singles, versões alternativas de alguns álbuns e discos ao vivo. No caso dos Beatles, para quem não tiver as fitas de 96, não há alternativa. O DVD extra, diga-se, também não traz grandes acréscimos. Apresenta mais imagens raras e um making of dos três CDs duplos de "Anthology", além de uma dispensável jam de Paul, George e Ringo nos anos 90.
É claro que uma amostragem tão extensa do currículo de duas bandas tão significativas faz lembrar o quanto elas foram importantes para a história da cultura ocidental e como, por tabela, ambas acabaram mudando o mundo. E como mudaram: nos dois primeiros DVDs de "Anthology", não impressiona somente a histeria literalmente gritante da beatlemania (que banda ou artista hoje consegue despertar frenesi semelhante?), como também a forma como o amadorismo de então foi suplantado. Em shows em Washington, John, Paul, George e Ringo são obrigados a mudar a posição dos equipamentos a cada música, de forma que todos no ginásio vejam a banda de frente. Sem roadies.
No limiar entre a primeira e a segunda metade do documentário, os Fab Four se cansam da musicalidade perneta de suas apresentações ao vivo – tecnicamente inviáveis, visto que a banda não ouvia a si própria, tamanha a gritaria -, se recolhem ao estúdio e gravam obras definitivas como "Sgt. Pepper’s" (1967) e o Álbum Branco (68). O DVD três capta esse ponto de mutação, e é particularmente o mais interessante. Os relatos sobre a feitura de "Sgt. Pepper’s" são deliciosos, especialmente a extensa parte sobre a composição de "A Day In The Life".
Na mesma época, os Stones também experimentavam a sua evolução, até mais impressionante em relação aos Beatles, se for levada em conta a frouxa banda que registra os três primeiros discos, "England’s Newest Hit Makers", "12 x 5" (ambos de 64) e "The Rolling Stones Now!" (65). Vacilantes na hora de compor material próprio, preenchem o repertório com covers de música negra, nas vertentes blues (Willie Dixon), rock (Chuck Berry) e R & B (Solomon Burke).
Reza a lenda que, insatisfeito com a situação, o empresário Andrew Oldham trancou Mick Jagger e Keith Richards na cozinha de sua casa sob a condição de que só sairiam de lá se compusessem material próprio. A dupla produz pepitas como "(I Can’t Get No) Satisfaction", "The Last Time" e "Paint It Black". No pacote da Universal, o momento histórico é flagrado em "Aftermath", de 1966, o primeiro álbum da banda totalmente composto por músicas de Jagger e Richards. Plural, o disco abre na versão americana com a orientalizante "Paint It Black", a popíssima "Stupid Girl", além da balada "Lady Jane" (que parece antecipar "Angie") e o rock "Under My Thumb". Há espaço até para country tradicional, em "High And Dry".
O trabalho também acirra a disputa entre as duplas Lennon e McCartney e Jagger e Richards – John disse à época que tudo que os Beatles faziam os Stones imitavam meses depois. Não deixa de ser evidente: a cítara utilizada por George Harrison em "Norwegian Wood", de "Rubber Soul" (66), abre "Paint It Black". O mico da banda londrina fica evidente em "Their Satanic...", imitação razoável de "Sgt Pepper’s" que foi ridicularizada pela crítica. A emulação é evidente no corinho de "Sing This All Together", ou nos metais de "She’s A Rainbow".
A relação entre os dois conjuntos era amistosa em seus primórdios, tanto que os Beatles compuseram um dos primeiros hits dos Stones, "I Wanna Be Your Man" (incluída no CD triplo "Singles Collection", parte do pacote), e a disputa enveredou tanto em favor dos rapazes de Liverpool que a história lhes permitiu uma certa arrogância. Em "Anthology", eles ignoram solenemente o contexto agitado dos anos 60, e cercam os relatos nos limites da própria banda.
É um dos poucos defeitos do documentário, que também peca ao abordar de forma superficial ou simplesmente não mencionar assuntos espinhosos, como a homérica disputa contratual entre Paul e os outros três na hora de decidir quem seria o empresário da banda após a morte de Brian Epstein, em 67 (o baixista preferia seu sogro, Lee Eastman, o resto do grupo optou por Allen Klein); o vício de John em heroína, a partir de 68; Yoko Ono; a polêmica mexida do produtor Phil Spector no material das sessões do projeto "Get Back" (69), que acabaria virando "Let It Be" (lançado em 70). Mas as falhas são amplamente compensadas pelo impecável material de arquivo e pelas ricas inserções musicais, que não cortam as canções ao meio.
Enquanto os Beatles atravessavam a experiência amarga do fim, os Stones voltavam a encontrar conforto na arte de serem eles mesmos soltando o nervoso "Beggar’s Banquet" (68), tenso a partir de suas faixas emblemáticas, "Sympathy For The Devil" e "Street Fighting Man". A potente "Stray Cat Blues" traz uma das interpretações mais furiosas de Jagger, que canta aos berros, e até as baladas soam contundentes, como na pungente "Salt Of The Earth", que fecha o disco. É o último registro da banda com o guitarrista Brian Jones, que seria encontrado morto na piscina de sua casa no ano seguinte.
A agressividade do trabalho parece prenunciar o fim da era do flower power, quando o sonho dos anos 60 começava a se esboçar como uma grande furada. Os Beatles, a seu modo, confirmam a tese, ao anunciarem seu fim sintomaticamente em 1970. Em "Plastic Ono Band", seu primeiro-solo após a banda encerrar atividades, lançado no mesmo ano, Lennon decreta: "Eu não acredito nos Beatles, só acredito em mim" ("God").
Os Stones recrutam Mick Taylor e tentam manter o traçado de seu vôo no ótimo "Let It Bleed" (69), disco vibrante que traz delícias como "Gimme Shelter", "Love In Vain" e "Midnight Rambler". Em junho daquele ano, a banda se apresenta no Hyde Park, em Londres, e dedica o show a Brian Jones, morto dias antes. O ato parece decretar o fim da primeira fase da banda, mas é uma sensação ilusória.
O corte definitivo se dá no final do mesmo ano, no histórico show em Altamont, quando os seguranças dos Hell’s Angels mataram um jovem negro na frente do palco, enquanto os Stones tocavam "Under My Thumb". O gesto enterra os anos 60 e dá cores finais ao processo em que o rock perdeu sua aura ingênua, este último um fenômeno no qual Jagger, Richards, Lennon e McCartney tiveram influência decisiva.
Mas dali em diante ninguém envolvido se deu mal – em outra gravadora, os Stones se mantiveram criativos por mais meia década, com fôlego para compor uma nova obra-prima, "Exile On Main Street" (72), antes de começarem a se sustentar apenas com o nome. Os Beatles lançaram discos-solo de sucesso e viram sua influência lhes garantir uma reputação póstuma imaculável. Desnecessário dizer, e para confirmar o clichê, cheia de cicatrizes, a música permanece.