Ao longo de uma carreira de mais de uma década e quatro discos, o Mundo Livre S/A sempre teve que lidar com a fama de fazer som difícil. O que apenas comprova a miopia generalizada que assola o mercadão há uns quinze anos - pode existir coisa mais popular e radiofônica do que "Bolo de Ameixa" ou "Meu Esquema"? Após o fim da Abril Music, com quem tinha contrato, a banda liderada por Fred 04 (que agora grafa apenas Zeroquatro) se vê de volta à independência.
Após cuidadosa gestação, chega às lojas "O Outro Mundo de Manuela Rosário", lançamento da Candeeiro Records, selo de Pupillo, da Nação Zumbi, distribuído nacionalmente pela Trama. É interessante notar que, após anos e anos de acusações furadas, o Mundo Livre S/A está realmente soando "difícil". A partir do título, o disco é uma intrincada pasta conceitual, que inclui trechos de entrevistas, manchetes de jornal declamadas com ares messiânicos, longos discursos e toda sorte de blá-blá-blá que se encaixe nas bandeiras habituais de Zeroquatro: denúncia de agressões contra minorias, esquerdismo colegial, anti-americanismo.
Independente se o ouvinte concorda com o vocalista ou não, é tarefa árdua escutar "O Outro Mundo..." de cabo a rabo. Na viagem de fazer álbuns com conceito, o que é uma senhora pretensão de saída, muitas bandas de passado imaculável se perdem. Considerando-se que há três anos o Mundo Livre tinha soltado "Por Pouco", seu trabalho mais pop e que quase tangenciou o sucesso (talvez o melhor de sua carreira), a decepção é grande.
Zeroquatro declama suas letras com ares de profeta, esquecendo-se da melodia. Em "Muito Obrigado", ele faz uma justa crítica à Ordem dos Músicos do Brasil, mas de forma tão maçante que chega a ser tortura. "CNFS - Comunicado 2" e "Marcha Contra o Muro do Império" vão na mesma linha, com intervenções de entrevistas do lingüista Noah Chomsky (um must da galerinha que freqüenta o Fórum Social Mundial), aonde o falatório soterra grooves que poderiam gerar canções. Quem quiser ouvir falação que vá procurar alguma reunião de centro acadêmico.
"Embustation" e "O Outro Mundo de Xicão Xukuru" têm quase seis minutos cada uma, e vão na mesma linha de "conscientização" e "atitude". Colocadas uma na seqüência da outra, o resultado é um ataque de sono letal. Quando você consegue prestar atenção no que Zeroquatro está falando, percebe que ele alterna momentos mais e menos felizes em sua pregação. Na citada "Muito Obrigado", ele arrisca: "em terra de urubus diplomados não se ouve o canto dos sabiás". Em "Marcha Contra o...", o alvo é, claro, George W. Bush, que recebe um puxão de orelhas num inglês constrangedor.
O auge é mesmo "Embustation", que cospe: "um homem sem atitude não é mais do que um rato". Mas nós sabemos bem de que atitude Zeroquatro está falando. Se for pra levar a ladainha a sério, vai dar (muita) saudade do tempo em que ouvir um disco pra dançar, beber e se divertir não era heresia.
"O Outro Mundo..." só não é totalmente insuportável porque traz meia dúzia de faixas que lembram o melhor de "Por Pouco", que avisam que, apesar de tomado pela febre panfletária, Zeroquatro ainda é um dos melhores compositores do Brasil. "Inocência" traz aquele balanço preguiçoso à Jorge Ben, que o Mundo Livre recicla com uma competência superior a qualquer outra banda da atualidade, e fecha com ares psicodélicos, em belos dedilhados de violão, timbres datados, ecos e discretas vocalizações. Uma pérola.
O mesmo pode ser dito de "Digital Ao Vinagrete", em que todos os ingredientes da faixa anterior recebem o reforço de uma guitarra à Radiohead. O resultado é deliciosamente desnorteador. O Mundo Livre demonstra ser o ponta-de-lança na utopia ritmos regionais versus música pop internacional, ao oferecer o melhor dos dois mundos em "Azia Amazônica" e "Balada de Pablo e Manuelita" (que beira os oito minutos).
Mais manso, Zeroquatro compõe duas maravilhas, "Caiu A Ficha" (com arranjo de cordas glorioso) e "Caindo Em Si", simples, desolada e linda. É tão difícil fazer assim o tempo todo? Estas são as músicas que salvam "O Outro Mundo...". Mas são só seis em 14 faixas. O consumidor padrão, aquele que não lê Caros Amigos e que não acha que um fio de cabelo na esfirra da cantina é suficiente para justificar uma passeata contra o neoliberalismo canalha, vai ter que decidir se vale a compra.
Ao fim, "O Outro Mundo..." não pode deixar de ser considerado uma escorregada. Depois de ouvi-lo, você talvez sinta uma vontade doida de correr o mouse para o site dos Strokes e escutar a nova "12:51", uma delícia. Ou de colocar "Ventura", do Los Hermanos, no CD-Player. Em resumo, vontade de ouvir música de gente que se permite gozar no final.
Lançamentos
Ludov - "Dois A Rodar" (Independente)
O quinteto paulistano Ludov nasceu das cinzas dos extintos Maybees, que, entre o final da década passada e o início desta, chamaram atenção no circuito indie com bom pop rock de sotaque britpop. Tudo que a banda fazia era extremamente profissional, dos encartes à produção das canções - mas as letras eram em inglês, o que impedia aquele passo a mais. Com o novo nome, o grupo lança agora "Dois A Rodar", um EP de seis faixas enxuto e no ponto. Sem as amarras do idioma, o Ludov aponta credenciais para se tornar um campeão de vendas: arranjos simples, refrões adesivos e interpretação segura, com instrumentistas afiados e a voz refinada de Vanessa Krongold. Num repertório sem tropeços, ganham por uma cabeça as belas "Da Primeira Vez" (com metais à Los Hermanos), "Aconteceu" (que lembra as baladas mais corta-pulsos dos Smiths) e "Princesa" (com jeitão folk). Para comprar:
www.ludov.com.br.
Para quem gosta de: Pato Fu, Los Hermanos, rock gaúcho.
Dandy Warhols - "Welcome To The Monkey House" (EMI)
Quem vê fotos da banda americana Dandy Warhols pode achar que se trata de uma boy band. O grupo decidiu adicionar um tom fashion agora também à sua música, que antes basicamente reciclava Velvet Underground - melhor referência, impossível, menos original, impossível também. Em "Welcome To The Monkey House", seu primeiro disco a sair no Brasil, os Dandy Warhols colocam teclados dos anos 80, refrões festivos e batidas dançantes no lugar do rock taciturno. Tem participação dos tiozinhos do Duran Duran e lembranças de "Midnite Vultures", o micado disco black de Beck. Ou seja, nem as boas referências os Dandy Warhols têm mais.
Para quem gosta de: Soft Cell, Duran Duran, anos 80.
NOTA TRISTE
No momento em que esta coluna recebia as últimas linhas, foi divulgada à imprensa a morte de Johnny Cash, 71 anos, ironicamente o destaque da semana passada. Quem dera todo veterano do pop se mostrasse tão relevante e inspirado em seus últimos anos quanto o Homem de Preto.