Uma história contada em contraponto. Contraponto é uma daquelas técnicas bacanas da literatura que já virou estrela de cinema: é contar várias histórias que se cruzam, mas não necessariamente se entrelaçam. Um belo exercício de estilo.
Exercício e estilo, também encontramos nas tais academias. Eu sempre desconfiei de academias. Seja aquela da Malhação, seja a do Oscar, seja a instituição de Ensino, Pesquisa e Extensão, e SOBRETUDO a tal de Brasileira de Letras.
Letras muito bem tratadas no texto de Tezza, que narra o dia de um foto-jornalista (inominado pelo autor) que arranjou um bico pra fazer: 200 dólares por rolo de filme que ele bater de uma moça chamada Íris. O cenário da história é o Brasil pré-eleição de 2002.
Para ser eleito para a Acadêmia Brasileira de Letras, ou seja, pra ganhar a imortalidade, o mortal deve se candidatar, demonstrando interesse em ficar usando um saião com frufrus de ouro, enquanto toma chá de tice com o ex-presidente Sarney.
As eleições presidenciais têm um cheiro de transformação, coisa presente em vários personagens do livro, buscando a mudança: Íris, Lídia (esposa do Fotógrafo), Duarte, o próprio Fotógrafo. As coisas estão prestes a acontecer.
Quando acontece eleição na ABL, existe uma mentirada de que toda eleição é por unanimidade. Após a contagem dos votos, o reles (em breve imortal) é aclamado sempre por unanimidade. Por isso eles queimam as evidências físicas dos votos.
Unânime ou não, a ABL premiou O Fotógrafo de Cristóvão Tezza como o Melhor Romance de 2004, publicado no Brasil.
Como não li todos os romances brasileiros de 2004, não me sinto em posição de discutir. Mas que o livro do Tezza é bom, isso é.
Considero (como o próprio autor) esse o seu melhor trabalho. Um livro de detalhes, de poucos acontecimentos marcantes no exterior e de grande representação interna, de uma estrutura funcional, de trabalho de enredo em favor do desenvolvimento dos personagens.
Temos um retrato do centro de Curitiba enquanto ele é percorrido pelos personagens: Cine Luz, Reitoria da UFPR, Círculo Militar. Bacaníssimo pra quem já conhece a capital social (ainda é essa a epígrafe?) e não compromete a leitura de quem nunca esteve por aqui, pois Tezza mescla a realidade física com uma cidade inventada.
Os títulos dos capítulos capturam a parte principal da ação, mas não o que de mais importante aconteceu. Como se fossem legendas de fotografias, que ao serem vistas trazem à mente lembranças da situação em que elas se deram, as pessoas envolvidas, as percepções daquele instante, indo além da imagem apreesentada.
O retrato que o livro faz são de parte de um dia de quatro pessoas que se relacionam de alguma forma. Ao final da leitura, fica aquele incômodo característico de texto bom, de coisa quase resolvida.
Falando em incômodo, me permitam um parêntese): quão confiável é a ABL?
Somemos as evidências: entre os bons autores vivos do Brasil temos uns cincoseis imortais pingados de chá.
Sclyar, Telles, Suassuna, Junqueira, Bosi. Num dia de bom humor, pelos serviços prestados à literatura, concedo Cony e Ubaldo Ribeiro.
De outro lado, vamos de José Sarney, Ivo Pitanguy, Paulo Coelho, Zélia Gattai, Marco Maciel, etc.
E ainda por outro lado (o de fora) temos: Mário Quintana, Graciliano Ramos, Carlos Drumond de Andrade, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Veríssimos (nem pai, nem filho), Clarice Lispector, etc.
É óbvio que inúmeras bundas ilustres presentificaram-se nas cadeiras da Academia. Mas positivamente tem algo errado quando nomes como aqueles ali de cima não estiveram nas fileiras da MAIOR organização literária brasileira.
Certo, nem todos quiseram se candidatar. Mas vamos ao segundo ponto:
Para entrar na ABL não precisa ser bom escritor (nem escritor ser, por exemplo, Getúlio). Precisa ser amigo dos imortais que estão vivos e votam em você.
Apesar de toda essa desconfiança de que se faz digna a ABL, eles premiaram um livro de um grande autor. Sei lá se é realmente o melhor de 2004, mas o importante é que um bom livro volta a ser evidenciado e ter destaque.
Por exemplo, essa coluna só sai tão depois do lançamento do livro, pela premiação da ABL (ah, humildade!).
Se a Academia vale alguma coisa, não sei. Mas as pessoas param pra ouvi-la. A imprensa noticia. Os colunistas, colunam.
E pro Tezza ela certamente valeu: o autor premiado ganha, além da repercussão de seu livro, agradáveis 36 mil reais.
É, pra tu ver: nem sempre dá pra reclamar da ABL.
Leituras Relacionadas: Contraponto (Aldous Huxley), O Trapo (Cristóvão Tezza), As Armas secretas (Julio Cortázar) e Saraminda (José Sarney).
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