Sua Santidade, o Dalai Lama, no livro A arte da felicidade, diz que a vida é transformação. O prefixo latino trans- significa "mudança"; transformar é, portanto, mudar a forma, o estado físico do corpo. Para o Dalai Lama, aceitar isso é desapegar-se do passado; não aceitar é sofrer.
A transformação do ser humano não deve ser entendida apenas sob o aspecto físico, mas também sob o aspecto intelectual e emocional. É notório que mudamos fisicamente, apesar de alguns se negarem a envelhecer e tentarem manter seu corpo como o de um adolescente por meio de aplicação de silicone ou de botox, de lipoaspiração, de cirurgias plásticas variadas, de dietas absurdas. Muitos sofrem porque não conseguem seu intento: querem olhar-se ao espelho e encontrar a pele lisinha, os olhos vívidos, os cabelos viçosos, mas encontram a realidade, e para eles a realidade dói.
A transformação da mente não é tão evidente quanto à do corpo porque ela tem de ser alcançada por meio de muito esforço, e a maioria não tem vontade alguma de se esforçar para isso. Alguns não percebem que sua mente nada evoluiu; preocupam-se tanto com a estética corporal, que negligenciam o desenvolvimento intelectual. Desapegam-se ao passado, não porque tenham apego a algo mais evoluído, mas porque não refletem sobre sua própria situação.
APROXIMAR-SE DA SABEDORIA
O desapego ao passado é aceito pela maioria com naturalidade. É até desejável que se deixe nos tempos pretéritos o que passou, aproveitando-se dos ensinamentos dos mais sábios e das experiências adquiridas pela própria vivência para, com isso, aproximar-se da sabedoria.
Ninguém quer ficar preso ao passado; quer-se, sim, desenvolver-se, profissional e pessoalmente. Ninguém quer continuar com os mesmos pensamentos, crenças e hábitos da época em que se era jovem; alguns até renegam o que lhes aconteceu na adolescência.
DOIS CASOS DE RENEGAÇÃO
Lembram-me agora dois casos de renegação: Em 1981, quando Álvaro Eduardo, o meu parceiro em livros de poesias, e eu conversávamos sobre poesias com um cidadão que já contava com uns quarenta e cinco anos, ele nos disse que escrevera muitas poesias quando era jovem, mas que havia deixado isso de lado; eram coisas de adolescente. Não tinha mais romantismo; passou a ser mais prático; tinha de pensar nos negócios, na família, na educação dos filhos; transformara-se em adulto, em homem sério, e homem sério não tem tempo para essas ações juvenis.
E alguns anos depois, um antigo escritor de poesias belíssimas disse que não mais aceitava como suas as poesias que escrevera porque não mais pensava da maneira como pensara quando jovem, pois evoluiu nos anos que se sucederam àqueles dias. Suas antigas inspirações poéticas não estavam em harmonia com suas crenças atuais. Estas (as crenças) passaram a ser mais importantes que aquelas (as inspirações poéticas), que foram relegadas ao esquecimento. Mas, pergunto-lhe, e no futuro? As crenças atuais também serão relegadas ao esquecimento, e outras as substituirão? É simples troca de preferências? Acredito que seja algo maior, mais relevante que isso.
O QUE ME ACONTECEU, ACONTECEU
Eles se desapegaram de seu passado exageradamente, pois desapegar é "perder o envolvimento, a dependência ou o compromisso com algo" ou "perder a afeição por algo".
Eu me desapeguei de minhas poesias adolescentes porque não mais tenho envolvimento com elas; o que me levou a escrevê-las não mais faz parte de minha vida; não tenho mais, portanto, afeição alguma pelo que aconteceu comigo nem pelo que me foi fonte de inspiração. Minhas afeições hoje são totalmente diversas às daquele tempo. Mas as poesias ainda existem; eu que as escrevi; fizeram parte de minha vida e me ajudaram a evoluir. Não posso fingir que não aconteceu o que me aconteceu mesmo que muitas coisas me tenham sido desagradáveis e me tenham trazido sofrimento.
O QUE ELES FAZEM É RENEGAR
Aqueles dois, porém, adotaram a atitude de não aceitar o que lhes ocorreu como genuinamente seu, o que extrapola o significado de desapegar. O que eles fazem é renegar, já que repelem o que eles mesmos fizeram. A renegação é negativa para a evolução, pois somos o que somos pelo que já fomos, e o que seremos depende do que somos.
Temos de valorizar o que realizamos em todas as fases da vida para que se transforme em aprendizagem. A vida é transformação. Transformar-se exige esforço. O objetivo da transformação tem de ser a busca incessante da sabedoria e a reflexão sobre o que é importante para a própria evolução.