Era o fim. Meu irmão iria morrer. Eu não suportei ver sua morte. Corri para o canto onde estavam os quatro ratinhos nascidos havia uns cinco dias, ainda pelados e rosa, com os olhinhos esbugalhados, mas ainda dentro das pálpebras. Não sei; essa é a lembrança que carrego: os olhinhos esbugalhados dos ratinhos pelados. Não me lembro dos pais deles, mas me lembro deles, que cresceram e sumiram-se dali.
RASTRO DE SANGUE
Eu só tinha quatro anos e já iria encarar a morte! Meu irmão iria morrer. Tive certeza disso quando o vi saindo do milharal deixando um rastro de sangue pelo chão arenoso do quintal. Vi o facão que ele usara jogado entre os pés de milho, com a lâmina toda vermelha; uma de suas pernas estava ensanguentada, e ele gritava de dor.
SAIAS E GRITOS
De onde eu estava, ouvia minha mãe gritando, chamando pela vizinha e por mim. Ninguém sabia onde eu estava. A vizinha veio, gritando também. Aquela gritaria parecia não ter fim. Minha mãe e a vizinha gritavam; meu irmão gritava. Mais vizinhas corriam até lá, gritando; mais mulheres desesperadas; mais saias e gritos. Logo depois, porém, veio o silêncio; era o silêncio da morte. Nem choro nem grito, nada. Silêncio. Eu não tive coragem de sair dali para encarar a morte. Fiquei olhando os ratinhos, esperando que eles fizessem algo, mas eles nada faziam; eram muito pequenos; frágeis demais. Não tinham nem um pelinho; lisinhos, lisinhos. Parecia até serem transparentes. Um deles parecia uma chupeta; a minha chupeta!
DEUS TUDO PODE
Naquele momento, lembrei-me de que minha mãe sempre dizia que Deus tudo pode. Comecei a rezar, pedindo a Ele que salvasse meu irmão, que o trouxesse de volta à vida, e fiz minha primeira promessa: deixaria as chupetas se trouxesse meu irmão de volta. Minha mãe sempre pedia a Deus que eu deixasse de chupar chupetas, mas eu era meio viciado; não conseguia ficar sem minha chupeta rosa. Foi meu primeiro vício.
CICATRIZ
Cansada de não ser atendida, minha mãe resolveu acabar com meu vício por conta própria: jogou minha chupeta no fogão a lenha que havia em casa e saiu para o quintal. Eu peguei um pedaço de madeira e fui salvá-la: puxei-a para fora do fogão; ela caiu e grudou-se à minha perna direita, deixando, posteriormente, uma cicatriz no formato do bico da chupeta. Fiquei queimado, mas mostrei à minha mãe o quão importante era aquele vício para mim. Ela passou a permitir que eu me satisfizesse com a chupeta, numa tentativa de me compensar a queimadura.
PROMESSA
Aquele ratinho-chupeta me deu a ideia: prometi nunca mais chegar perto de uma chupeta se meu irmão voltasse à vida. Fiquei ali, conversando com os ratinhos, comigo mesmo e com Ele, pedindo, pedindo. Sei que Ele nunca atendeu aos pedidos de minha mãe, mas comigo poderia ser diferente, já que se tratava de um caso de morte, e eu sempre havia sido bonzinho como minha mãe me recomendava.
TERROR INEXISTENTE
Mais tarde, ouvi minha mãe já dentro de casa, bronqueando com meu irmão, dizendo que nós não podíamos colher milhos sozinhos, que era perigoso, que ele teve sorte de apenas ter cortado o joelho, que tinha de esperar meu pai chegar para colher milhos, blá, blá, blá... Entrei correndo em casa e vi, aliviado, meu irmão com a perna enfaixada. Devem ter dado uns doze pontos no joelho dele. Ele errou a ‘facãozada’, quando tentou cortar uma espiga de milho, e acertou direto o seu joelho esquerdo. Os meus olhos de criancinha viram um terror inexistente; viram a morte quando havia apenas um pequeno acidente. Até hoje ainda acontece isso comigo: às vezes vejo o pior onde há situações meramente corriqueiras...
PROMESSA NÃO CUMPRIDA
Quanto à minha primeira promessa, foi também a primeira a não ser cumprida. Pensei cá comigo: Se Deus era tão meu amigo a ponto de salvar meu irmão por eu Lhe ter pedido isso, permitiria que eu mantivesse meu pequeno vício como minha mãe o fizera. Assim, com a anuência de Deus e da minha mãe, continuei com as chupetas até os seis anos de idade e com a cicatriz a me marcar para sempre.