Não posso dizer que o pequeno lugar era ermo, desconhecido e não sabido, mas eu estava bastante longe de casa. Daqueles lugares em que não precisamos fazer muitas contas para calcular a diferença de fuso horário; simples, é só pensar que é noite lá, e dia aqui.
Pois de uma ilha para outra precisei pegar um avião. Mesmo pelo nome da companhia aérea eu tinha certeza que seria um daqueles que servem para testar o nosso desassombro perante a vida. Melhor, o nosso grau de irresponsabilidade frente à vida. Já imaginei aqueles lerdos, pequenos e esquisitos aviões a hélice, mais parecidos com patos, que ligam as ilhas do Caribe; asas altas, de lona, portas tipo kombi, trem fixo, alguns até hidro. Mas não, para a minha surpresa era um Brasília, da Embraer. É impressionante como nesses momentos o coração de um brasileiro enche-se de orgulho. Mais importante do que o ufanismo inicial, ele é simplesmente fantástico: confortável, estável, rápido. Agora dá pra entender porque os canadenses entraram em parafuso. Bem mas não é sobre o avião da Embraer que esse artigo quer tratar.
Acomodei-me no meu lugar achando que aquele dia já começava bem pois, avião lotado, o assento ao meu lado era o único vazio. E eu, morto de sono. E por maior que seja o conforto de um Brasília ele ainda é um pequeno (talvez médio) avião. Poltronas, altura e corredor reduzidos se comparado a um grande jato. Principalmente para um passageiro de 1,87mts. Mas essa minha sorte não durou muito. Um pouco antes do encerramento do embarque, pela janela vi um homem esbaforido que corria em direção ao Brasília. E por maior que tenha sido a minha torcida, não teve jeito. Era mesmo o último passageiro do “meu” avião. E para piorar a situação, ele era imenso. Desses gigantes pela própria natureza. E adivinhe qual seria o seu lugar? Tornou-se ainda maior quando entrou. Naquele momento pareceu que o avião havia encolhido. Suas feições eram, digamos, “quadradas”. Dessas que parecem ter sido definidas a machado, uma verdadeira escultura da ilha de páscoa. Rugas profundas, vincos podemos dizer. Mas não de velho. De maltratado. Despenteado, roupas simples, percebia-se facilmente o seu grau de vaidade: zero. Além disso, ainda derretia em suor após toda a sua correria. Meio constrangido, distribuiu “sorries” para todos os passageiros em que havia esbarrado (acho que todos). Também, a sua bagagem de mão não cabia nas gavetas. Mais atraso pois foi preciso reabrir o compartimento de bagagem. Sabem aquela estória do elefante dentro da loja de cristais? Foi exatamente isso. Do piloto à torre de controle, por um motivo ou outro ele conseguiu desagradar a todos. Acho que não preciso dizer que a mim, principalmente. Depois da sua entrada triunfal, praticamente “vestiu” o banco ao meu lado (ou melhor, o avião). Meio encolhido no meu lugar, vi confirmada na prática uma lei fundamental da física que diz não ser possível a presença de dois objetos no mesmo lugar ao mesmo tempo.
Em seguida foi enrolando as mangas da camisa. Pude então perceber, meio de rabo de olho, que trazia nos antebraços diversas tatuagens. Mas não essas bonitas, coloridas, bem feitas que estamos acostumados a ver nos amigos. Tatuagens mal feitas, feias, mal desenhadas, aquelas que só são feitas em dois tipos de pessoas: marinheiros... ou presidiários.
Portanto vocês já perceberam, por todos os motivos mais as suposições, tracei o pior perfil possível daquela figura. Qualquer que fosse a palavra que ele dissesse, a chance de me agradar seria zero, pensei. Pois ele virou-se para mim e com um sorriso amarelo e humilde, uma voz doce e um olhar puro disse-me bom dia e foi falando em tom de desabafo, do seu constrangimento por ter atrapalhado tantas pessoas. Me desmontou. Naquele instante lembrei-me imediatamente daquele velho do filme “Esqueceram de Mim I”. Lembram-se? O menino morria de medo ao vê-lo pela janela pois era muito feio, horripilante. Era o horror da sua vida. Um dia encontrou-o numa situação em que não podia fazer o que sempre fazia, fugir em desabalada correria. Acuado em um banco de igreja, seu estado era de pavor. E o velho veio vagarosamente em sua direção. E era a coisa mais amável do mundo. Voltando à minha estória, me senti envergonhado, como se ver livre desse preconceito simplesmente idiota de julgar as pessoas pelas aparências ou por atitudes superficiais?
Bem, começamos a conversar. Aquele pouquíssimo original roteiro de perguntas entre duas pessoas que estão viajando e por um acaso se cruzam: de onde você é, para onde vai, há quanto tempo está viajando.... De repente ele perguntou-me mais ou menos o seguinte: onde estavam as outras pessoas com quem eu viajava? Respondi-lhe que eu viajava sozinho. Ele, em gestos de espontaneidade que só os puros de espírito possuem pegou no descansa-braço, virou-se para mim com os olhos surpresos e disse: o que? Você está do outro lado do seu país, em viagem de férias, há 23 dias. E está sozinho? E já emendou: você deve ser uma pessoa muito bem resolvida! Naqueles breves segundos logo após essa afirmação fiquei sem ação pois um rápido filme da minha vida passou na minha mente. Mas explico-o a seguir; não quero que vocês percam o fio da meada. Ele então continuou; posso falar sobre isso pois desse assunto eu entendo. Vou contar-lhe uma frase que existe na Irlanda, o meu país, que tem tudo a ver com o que estou lhe dizendo: “You are really ready for life when your mind becomes your best friend”.
Permitam-me não traduzi-la para o português. Tem tamanha força, tamanho peso, praticamente impossível mantê-la fiel em outra língua. Opinião muito pessoal, existem coisas que não devem ser traduzidas quando são perfeitas em seu idioma original. Exemplo? Alguém já prestou atenção no crime que é a tradução de Garota de Ipanema para o inglês?
Sobre a frase, pareceu como a última peça de um quebra-cabeças cuja imagem final só se revelou quando ela foi encaixada. Tanto com relação ao passado como também ao presente, tantos eventos da minha vida que nunca pude entender, ficaram claros. Dois exemplos: eu sempre adorei viajar sozinho. As melhores e inesquecíveis viagens da minha vida, fiz sozinho. Mas nunca tentei analisar o por quê de terem sido tão boas. Agora entendo. Talvez eu fosse uma pessoa bem resolvida no passado e, por isso, vivia bem com a minha companhia. E com relação ao presente, mais precisamente aquela viagem que eu fazia naquele momento. Lembrei-me das inseguranças, dos “medos” que me assolaram antes de fechá-la. Obs.: quase não a fiz, quantas desculpas achei para, por milímetros, não fazê-la. Nem eu entendia os motivos. Essa frase, tudo explicou. Após todas as cicatrizes que a vida me trouxe nos últimos tempos, na verdade eu estava com medo de viver comigo durante aqueles quase trinta dias. No fundo, não me achava capaz. Não mais. Acho que crise de auto-estima. Mas fui. E foi a melhor viagem da minha vida. É até meio ridículo dizer isso, mas voltei orgulhoso de mim. Em paz comigo.
Podemos divagar amplamente sobre essa frase. Um tio meu, posso dizer meu guru, diz o seguinte: podemos enganar o mundo inteiro mas jamais enganaremos duas pessoas - Deus (para quem acredita), e a nós mesmos. Misturando essa afirmação com a frase irlandesa podemos dizer que jamais “our mind will become our best friend” se nós carregamos conosco culpas, dores de consciência, tormentos. Jamais teremos paz quando sós com o nosso travesseiro.
Enfim, não sei se vocês acreditam em destino. Só sei que em um lugar longínquo, no único assento disponível de um avião sentou-se ao meu lado alguém que me disse tudo aquilo que eu precisava (e merecia) escutar naquele momento da minha vida. É, dá pra pensar....
E.T.: Sobre o irlandês? Era marinheiro desde sempre. Tinha 50 anos, estava indo para Atenas fazer parte da tripulação de um navio em uma viagem de uns quatro meses. Tinha um filho (seu orgulho apesar de pouco vê-lo) cujo nome era Tritão, que morava com a mãe. Sua esposa o abandonou há quinze anos. E era feliz pois “possuía imensas riquezas”. Eram: a vida, os seus amigos, Deus, o mar. E a si próprio....