Arte e Cinema

Os Donos da Noite

22 nov 2007 às 11:00

O cinema de gênero está morrendo. Poucos cineastas se atrevem a contar uma história. Não há mais espaço para personagens e temas "maiores que a vida".

Bem, todas as possíveis "certezas" sobre o cinema contemporâneo caem por água abaixo diante de um monumento chamado "We Own the Night" (Os Donos da Noite). James Gray, assim como nos anteriores "Little Odessa" (Fuga para Odessa) e "The Yards" (Caminho sem Volta), rompe com todos os paradigmas de um certo cinema que está muito mais próximo de uma pintura abstrata do que a tradição figurativista.


Não se trata, nesse caso, de renegar as possibilidades oferecidas por cineastas como Hou Hsiao-hsien e Apichatpong Weerasethakul, que, em certa medida, revisitam e ampliam uma certa estética já proposta por Antonioni nos anos 60. Trata-se apenas do reencontro com um certo tipo de cinema que parecia estar morrendo, preso em lógicas por demais previsíveis, sem criatividade visual e suporte dramático à altura.


O que James Gray faz em "We Own the Night" é quase um grito silencioso conclamando os demais cineastas a uma possibilidade narrativa que já consagrou dezenas de diretores na tradição cinematográfica americana. Temos em seu filme todas as características de um policial clássico: o protagonista (Joaquin Phoenix) que não quer desempenhar seu papel central na trama; um personagem que serve como exemplo moral (Robert Duvall) e que se apresenta ao mesmo tempo de forma frágil e fria; e uma antípoda (Mark Whalberg), que concentra todos os valores que o protagonista recusa, e que vai, em certa medida, motivar uma reviravolta em seu universo. Por mais que o mafioso russo seja o vilão explícito do filme (e seja o personagem que cause mais repulsa diante do público), o grande inimigo na verdade está dentro do personagem de Phoenix: trata-se dele mesmo – uma luta interna contra um universo de valores que ele abandonou, que podem até fazer parte de sua natureza, mas, que pela sua trajetória, ele decidiu anular.


Como bem disse o editor da Contracampo, Luiz Carlos Oliveira Junior, em sua crítica, "We Own the Night" tem ressonâncias shakespearianas: o conflito entre irmãos (Rei Lear), respeito e repulsa em relação ao pai (Rei Lear); a vingança pela morte paterna (Hamlet); a renúncia em ser inserido em um código de valores que já não lhe pertence (Hamlet).


Trata-se de um épico, com claras referências ao gênero policial, e aqui cabe uma citação do crítico francês Serge Daney: "O que vai ser filmado (quase) sempre já foi filmado. E quanto às imagens das quais ainda nos alimentamos, devemos concordar que seu referente não é mais precisamente uma "realidade" que experimentamos, mas sim a experiência imaginária que temos por já tê-la visto em outros filmes, o hábito formado pouco a pouco com a sua visão. Em todo plano de um homem andando na rua, eu não conecto a ele minha experiência – rica, no entanto – da caminhada, mas uma série de lembranças, da "Aurora", de Murnau, até "A Punição", de Jean Rouch. O que é a morte, para a nossa geração cinemaníaca que se joga nas cinematecas, senão o efeito dos corpos tombando por terra no cinema?" (A Rampa, pg 41).


Essa teoria de Daney se aplica exatamente ao que sentimos ao assistir "We Own the Night": estamos diante de um universo simbólico familiar, que já conhecemos de longa data: quando vemos o personagem de Phoenix jogando cartas com seus amigos, com Eva Mendes a tira-colo, ocorre um reconhecimento prazeroso do universo de filmes de gangster. O mesmo efeito se repete quando Eva Mendes sai do seu quarto fumando, em câmera lenta, em uma sublimação capaz de arrebatar qualquer platéia. Há também a cena já clássica de abertura do filme, em que Eva está se masturbando ao som de "Hearts of Glass", da Blondie. E não há como esquecer a majestosa perseguição de carros, que imediatamente nos remete a exemplos máximos como "The French Connection" e "Bullit", mas ganha um toque pessoal de Gray ao ser mais concisa e visualmente dramática com o realce da chuva.


Não tenho certeza se Gray, assim como Abel Ferrara, é do time que prefere filmar menos e com mais de uma câmera (nos créditos finais constam câmeras A, B e C). O que nos impressiona, sem dúvida, é a verdade dramática atingida pelos atores, o que se evidencia mais ainda em cenas de um certo extremismo emocional. O momento em que Robert Duvall recebe a notícia em relação a um dos seus filhos, por exemplo, é exemplo de concisão e ao mesmo tempo explosão emocional. A cena que sucede a perseguição, em que Phoenix se vê diante do ápice de uma certa tragédia pessoal, é arrebatadora também.


Phoenix, aliás, é um dos pontos altos do filme. Excepcionalmente adequado ao personagem, ele consegue caminhar entre limites extremos com uma fluidez digna dos grandes intérpretes. Seu personagem, a alma do filme, desce do paraíso a um pesadelo terrível em poucos minutos. Seu rosto, no entanto, sua forma de andar, de ouvir, de falar, permanece sempre em uma esfera ambígua, em que pouco sabemos da sua vontade real.


Se não servir para ressuscitar o cinema de gênero de vez, "We Own the Night" já terá cumprido a sua missão ao menos por nos revelar que ainda é possível criar uma obra tão majestosa com elementos básicos e muito bem orquestrados. Ao lado de "Zodiac" (Zodíaco), de David Fincher; e da primeira metade de "Bug" (Possuídos), de William Friedkin, trata-se do melhor elogio feito nos últimos anos a um certo cinema americano setentista.

E em 2009 estréia "Two Lovers", de James Gray, novamente com Joaquin Phoenix. Que venha uma nova obra-prima!


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