Dos 23 filmes na competição oficial no 64º Festival de Veneza (ontem à noite foi exibido o filme-surpresa, ''Shentan'', de Hong Kong), há alguns que não merecem estar na disputa principal. São poucos, é verdade, mas são um desafio para se tentar compreender critérios de curadoria - o irresistível fascínio do diretor Marco Muller pelo oriente explica em parte, mas não justifica.
Este faroeste japonês, por exemplo. Quem sabe ficaria mais confortável se alocado entre os eventos especiais, ou na mostra paralela Orizzonti, uma espécie de pelotão B, ou ainda nas sessões informativas de meia-noite, todas sessões em que o nível de exigência não é assim tão rigoroso.
''Sukiyaki Western Django'' poderia se chamar ''Soja Western Sabata'', ou ''Tempura Western Ringo''. Daria na mesma. O prolífico e sempre discutível Takashi Miike, 47 anos, realizou aqui seu 75º filme, longe da ironia de Sergio Leone e muito próximo da crueldade e violência de Sergio Corbucci e de seu ''Django'', inventado aqui na Itália há 40 anos.
Numa cidade japonesa, séculos depois das guerras entre clãs, duas gangues se enfrentam armadas de espadas e pistolas. Um dia chega o pistoleiro misterioso e se coloca a serviço dos miseráveis do lugar. Ao final, o filme de Miike dá à luz o personagem de Franco Nero em ''Django'', inclusive embalado pela canção-tema, aqui na voz do rei do soul japonês, Saburo Kitajima.
Não deixa de ser curiosa esta troca de informações ocidente-oriente: em 1963, Sergio Leone buscou inspiração no ''Yojimbo'' (O Guarda-Costas) de Kurosawa para realizar o pioneiro dos spaghetti western, ''Por Um Punhado de Dólares''.
Pena que Miike seja frenético e despudorado, não se limitando a homenagear, mas inundando seu filme de borbotões de sangue, extravagâncias formais e clichês não reciclados. São 120 minutos que parecem o dobro, e até a presença, a princípio curiosa e meio moleque de Quentin Tarantino como o pistoleiro Pirringo, travestido do estranho sem nome de Clint Eastwood, se torna um apêndice indigesto.
Única produção de origem hispânica a disputar o Leão de melhor filme, o espanhol ''En La Ciudad de Sylvia'', de José Luis Guerrin, é uma minimalista e fascinante experiência poética alimentada por recorrente melancolia. E autobiográfica também. Segundo o diretor, em 1980, enquanto estudante em Strasburgo, ele teve brevíssimo contato com uma garota, do qual guardou somente dois detalhes: o nome, Sylvia, e os estudos dela, pediatria.
Partindo de duas pistas - o café onde encontrou a moça e uma livraria onde a procurou em vão -, Guerrin coloca em cena o rapaz em busca de um rosto, de uma sensação, de um vento, de um ideal romântico que todos tivemos um dia, alguns (poucos) realizados, outros (muitos) perdidos para sempre no tempo e nos labirintos da memória afetiva. Enquanto ele empreende a busca, a cidade lentamente se abre a descobertas.
O filme é de rara delicadeza e muito exigente: ou se mergulha sem volta neste universo de detalhes, minúcias, busca (recomenda-se adesão e cumplicidade absolutas), ou se sai desta cena, e da sala de projeção. De preferência em silêncio respeitoso.
Ontem foi o dia Tim Burton, o criador de ''Eduard Mãos de Tesoura''. O diretor recebeu o Leão de Ouro especial pela carreira, homenagem que o Festival de Veneza presta todos os anos a um notável do cinema.
Além da honraria, foi exibido um dos primeiros filmes de Burton, o bizarro ''O Estranho Mundo de Jack''. Agora em 3-D, com o público de óculos bicolores como nos anos 1950, assistindo à extraordinária versão digitalizada pelos magos da IL&M, de George Lucas. Como brinde, Burton mostrou ainda cerca de dez minutos de seu filme previsto para o Natal: ''Sweeney Todd'', com Johnny Depp, Helena Bonham e Sacha Baron Cohen, aquele hilário ''último repórter do Afeganistão''.
* O jornalista viajou a convite da organização do Festival de Veneza
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