Experimente juntar Nick Cave, Leonard Cohen, Bob Dylan, Dolores O'Riordan (dos Cranberries) e Hank Williams numa mesma festa. O resultado pode ser uma imolação coletiva, gente ateando fogo às próprias vestes, um festim deprê.
Pois essa turma está adequadamente reunida na trilha sonora de ''A Paixão de Cristo'', filme controverso do australiano Mel Gibson. ''Songs Inspired by the Passion of the Christ'' (Lançamento Universal Music) é uma trilha sonora um tantinho mentirosa - poucas das canções foram realmente ''inspiradas'' pela ''Paixão de Cristo''.
Existe ainda uma outra trilha, instrumental, composta por John Debney, que é totalmente decalcada de ''A Última Tentação de Cristo'', de Peter Gabriel. Esta não foi lançada no Brasil .
Bob Dylan compôs ''Not Dark Yet'' em 1997. Leonard Cohen escreveu ''By the Rivers Dark'' em 2001, assim como fez Nick Cave e suas Sementes do Mal em ''Darker with the Day''.
E Elvis Presley, que também está na trilha, certamente não poderia prever, em 1972, quando gravou ''Where no One Stands alone'' (gospel de Mosie Lister), que um puritano da Austrália iria fazer um filme sobre Jesus Cristo no distante ano de 2003.
O próprio Mel Gibson, nas notas do disco, explica porque escolheu cada uma das faixas que compõem o álbum, uma viagem por canções de natureza dark, compulsivas, dilacerantes.
É uma chance, por exemplo, para o ouvinte brasileiro conhecer o magnífico grupo The Blind Boys of Alabama. Com quatro veteranos cantores e um baterista, todos cegos, o grupo tem uma base gospel profunda e funde a tradição do R&B de Ray Charles com o rock primitivo de Little Richard. No álbum, o Blind Boys comparece com um spiritual inacreditável, a rústica canção de devoção ''Precious Lord''.
Sobre ''Not Dark Yet'', de Dylan, Gibson diz o seguinte: ''A magia da poesia de Bob Dylan é usar o humano, o tangível, para expressar algo de uma natureza superior e distante.'' Leonard Cohen transporta ''das trevas para a luz'' e Nick Cave comparece com seu ''incomparável estilo poético''.
Elvis cantando gospel merece um ''Longa Vida ao Rei!'' Como crítico, Gibson não chega a ser elucidativo, mas sua seleção é interessante. Na música, ele enxerga o nascimento da fé num determinado período da canção religiosa americana, mas também estende esse período para a música pagã, o blues e o country.
É um bom disco, com faixas interessantes, como ''How Can You Refuse Him now'', clássico de Hank Williams, cantado por sua filha Holly. E um grande happening do reverendo Billy Graham, pregando na introdução de ''Are You Afraid To Die'', de Ricky Skaggs.