Enquanto nos bastidores a controvérsia ficava por conta do suspense envolvendo o filme chinês ''2046'' - a cópia chegou afinal na quinta-feira pela manhã e foi exibida somente à noite, levantando suspeitas de que poderia ser um golpe de marketing do manhoso Wong Kar-wai -, os principais jornais europeus destacavam a boa impressão deixada por ''Diários de Motocicleta'' nas duas exibições da quarta-feira.
Na sessão de gala no Grand Théatre Lumière, para júri e convidados, a ovação destinada a Walter Salles e equipe só perde em duração e entusiasmo para àquela que, com justiça, reconheceu a importância, a necessidade e a urgência de ''Fahrenheit 911''.
Mês passado, quando justificou os títulos incluídos na seleção oficial, o delegado geral Thierry Fremau disse que este seria um festival de ''confirmações e descobertas''.
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Faltando 24 horas para o encerramento e apenas dois filmes para fechar a mostra competitiva, a afirmação de Fremaux não se confirmou. Há algumas certezas, jogando a favor desta desilusão. A de que, por exemplo, não é mais possível atribuir uma enormidade de talento aos asiáticos, indistintamente.
''Ghost in the Shell 2: Innocence'', de Mamoru Oshii (ou rebatizando: ''O ano em que o mangá chegou à Croisette''), segundo desenho animado a concorrer à Palma de Ouro este ano, é pretensiosa ficção científica futurista ambientada no ano 2032.
Apesar do visual rigoroso, deslumbrante, requintado ao extremo, o filme é lento e arrastado, filosoficamente glacial, recheado de citações eruditas para justificar o sempre atual conflito entre homem e máquina, entre humanidade em crise cyborgs fora de controle.
Pense em uma idéia original, e ''Innocence'' se apropriou dela: film noir, ''Blade Runner'', ''2001'', Descartes, Confúcio, Gênesis (o livro, não o grupo de rock), Milton e ''O Paraíso Perdido'', Freud, está tudo lá, se arrastando em tédio embalado em musica elegíaca e grandiloquente.
Da Tailândia, ''Sud Pralad'', ou ''Enfermidade Tropical'', é uma incompreensível e só raramente fascinante viagem aos recantos mais obscuros do coração humano.
Mas isto apenas se descobre depois de hora e meia (há mais meia hora final) de uma narrativa debilmente estruturada sobre dois rapazes que se gostam, nos confins da floresta tailandesa habitada por símbolos e presságios.
Apichatpong Weerasethakul, jovem diretor a merecer pelo menos um troféu qualquer pelo nome mais complicado de toda a lista de participantes, é o responsável por este punhado de sequências vagamente conexas, um desafio até ao mais paciente dos espectadores que frequentam o filme de arte e ensaio.
''Não temos nenhum problema em dizer que 'The Ladykillers' é uma verdadeira refilmagem, e não apenas um filme inspirado ou revisitado por'', disse na coletiva Joel Coen, desta vez sem o irmão Ethan.
Como eles assumem abertamente e sem ressalvas que fizeram um remake exato do maravilhoso clássico homônimo, cult absoluto realizado em 1955 na Inglaterra por Alexander Mackendrick (batizado no Brasil como ''O Quinteto da Morte''), então se justifica uma aproximação mais rigorosa a esta versão 2004 que também está na disputa.
Décimo-primeiro trabalho desta bem humorada dupla Palma de Ouro em 1991 por ''Barton Fink'' ''Ladykillers'' é o primeiro filme assinado integralmente pelos dois, até então Joel aparecia como diretor e Ethan somente como roteirista.
É uma comédia negra com Tom Hanks de volta ao gênero dez anos depois de ''Forrest Gump'', no papel que há 50 anos foi de Sir Alec Guiness, em composição inesquecível.
Hanks é o chefe de uma quadrilha de tipos bizarros, disfarçados de músicos e que se preparam para assaltar o cassino de uma pequena, modorrenta cidade do sul dos Estados Unidos.
Os planos são preparados no porão alugado na casa de uma viúva, negra, velha e piedosa, amante da honestidade e da Igreja Batista, como sempre sacudida por uma esplêndida seleção de gospel music. O roubo dá parcialmente errado, ela acaba descobrindo a falcatrua e agora precisa ser eliminada.
O segredo do estilo Coen, já nem tão secreto e que é sempre um mix de precisão, virtuosismo e invenção, parece aqui um tanto travado, como se o tempo do mecanismo da comédia não estivesse bem azeitado.
A salvação é o terço final. Fala-se em Tom Hanks para melhor ator do festival, mas Garcia Bernal está muito superior como o jovem Guevara de Walter Salles. Já Irma P. Hall como a bonachona vítima em potencial é uma maravilha de se ver.
Os dois últimos candidatos da França foram conhecidos na quinta-feira. O franco-argelino Tony Gatlif assina ''Exílios'' e retorna a temas prevalentes em seus 14 filmes anteriores, a grande maioria desconhecidos no Brasil.
Ele mesmo um argelino exilado na França no início dos anos 1960, Gatlif, de uma forma ou de outra, está sempre recontando a mesma história, aquela que faz com que o jovem casal (e ele, por extensão) parta para a Argelia de trem, ônibus, carona e a pé em busca das origens familiares e da identidade. ''Exils'' funciona bem como ''road movie'', mas um final que mistura sentimentalismo, descoberta espiritual e misticismo hippie não é lá muito convincente.
''Clean'' é assinado por Olivier Assayas, ex-crítico dos ''Cahiers du Cinéma'' e realizador eclético. Ele tenta a sorte de novo em Cannes, depois de duas entradas sem sucesso.
Agora ele traça o retrato da jovem viúva (a fulgurante Maggie Cheung, desglamourizada no papel) de um astro de rock, uma ex-drogada e ex-presidiária que tenta se ''limpar'' (daí o título, ''clean'', limpa) a fim de recuperar o filho sob a custódia dos avós do marido.
O roteiro é raso e não aprofunda conflitos, permitindo que o filme assuma um tom paternalista em relação ao problema. É a história de uma bela redenção, nenhuma dúvida quanto a isto precisa projeto mais edificante do que mãe drogada disposta a qualquer sacrifício para recuperar a posse do filho que inclusive a odeia? O problema é horizontalidade do relato, a ausência de alternâncias de dramaturgia que permitam aprofundar psicologicamente os personagens.
Do jeito que estão, parecem mais participantes de campanha institucional. Nick Nolte aparece como uma surpreendente ''remissão'', promovido de seu status de outsider crônico a insider redimido, no papel do avô boa praça e compreensivo.