Discutir refilmagens via Hollywood vale aqui a redundância já se tornou debate bizantino. Causas e consequências econômicas, sociais e ideológicas deste hábito que a industria norte-americana de filmes já incorporou definitivamente viraram ladainha sem fim. Tornou-se repetitivo, enfadonho e ocioso reiterar: (1) até certo ponto discutível crise de criatividade das cabeças coroadas mas pouco criativas; (2) uma nova aposta em bilhetes milionários já premiados; e (3) o inesgotável baú de afetos do american way de imagens, sempre aberto para uma revisita. Tem sido assim já há um bom tempo, vai continuar tudo igual por período com prazo de validade a expirar em futuro distante. Nenhum assombro, portanto, nenhuma comoção, nada de novo nesta política de ''restauração'' traçada com assombrosa objetividade mercadológica.
E como consequência temos à mão, a partir de hoje em grande número de salas brasileiras, o melhor trabalho de Tim Burton em anos: ''A Fantástica Fábrica de Chocolate''. A história disponibiliza infindáveis oportunidades para o diretor deixar-se levar aos confins de sua imaginação visual. E seu humor cáustico encontra vazão nas vicissitudes barrocas que cercam ótimos personagens e em especial o magnífico Willy Wonka (Johnny Depp), apresentado aqui como um tipo muito amalucado.
Baseado no livro infantil ''Charlie e a Fábrica de Chocolate'', de Roald Dahl, escritor muito estimado pelos americanos, o filme é sobre um garoto (Freddie Highmore, o sincero e profundo garotinho de ''Em Busca da Terra do Nunca'') nascido de família pobre, mas muito carinhosa, que vive na cidade onde Willy Wonka mantém sua fábrica mundialmente famosa. A família de Charlie é tão carente que todas as noites eles comem sopa de repolho, e somente uma vez ao ano, no dia do aniversário, Charlie saboreia uma barra de chocolate. Uma tranquila narrativa a título de prólogo, pelo avô de Charlie, conta a história da fábrica de Wonka, desde o início até o fatídico dia em que ele despede seus funcionários e fecha as portas ao público. Desde esta data, a fábrica continua operando, embora por automação e outros meios misteriosos.
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Até a entrada em cena de Willy Wonka, ''A Fantástica Fábrica de Chocolate'' parece que vai se contentar apenas em ser mais uma história para crianças, com extasiante direção de arte e uma ou outra manifestação de irreverência aquele expediente para evitam que o adultos entrem em coma na sala escura. Mas quando os portões se abrem, ''A Fantástica Fábrica de Chocolates'' se transforma. As crianças são recepcionadas por um número musical interpretado por bonecos automatizados que pegam fogo acidentalmente. E então Willy aparece com um corte de cabelo à moda Príncipe Valente e luvas verdes, parecendo quase tão pálido e agindo de maneira quase tão esquisita quanto a de Michael Jackson.
Apesar da extravagância visual do filme, com toda certeza a platéia vai deixar o cinema comentando a performance de Depp. E com razão. Desta vez, o ator não se apóia unicamente em maneirismos, trejeitos e cacoetes, de resto e no caso dele especialidades não nocivas e sempre a serviço de alguma idéia. Desta vez ele está também habitando um completo personagem, alguém excêntrico cuja aparência serena é tão somente uma fachada que encobre uma vida interior feita de ressentimentos, nervos abalados e feridas contraídas na infância. Willy é marcadamente auto-controlado. Raramente diz o que está pensando, mas de forma fascinante o espectador que se deixa seduzir pelo filme consegue quase ler seus pensamentos. E sua luta para se manter educado, bem como a frequente discordância entre pensamentos e conduta, tornam-se muito engraçadas. E cada vez mais, à medida em que o filme avança.
O roteiro esperto, a divertida consistência de Depp e o brilho da inventiva dos sets espantam a monotonia que às vezes ronda a narrativa. Há uma cachoeira de chocolate, e Willy e seus convidados viajam num rio também de chocolate, a bordo de um navio vermelho com o formato de cavalo marinho. Há uma bela cena com esquilos e outra com uma ovelha cor-de-rosa, ambas para ficar na memória. Entre os bons personagens infantis há um alemão glutão, uma menina rica e mimada e um sabichão, sempre fotografados pela fulgurante imaginação de Tim Burton, que os torna simultaneamente mais bonitos e menos humanos. Para encerrar as férias com chave de ouro ou, melhor ainda, do mais saboroso chocolate.