A única surpresa da noite de domingo estava reservada para o último envelope. A orquestra regida pelo maestro Bill Conti já se preparava para atacar a trilha sonora de Gustavo Santaolalla quando subitamente, logo após o anúncio do vencedor por um Jack Nicholson atônito, teve que improvisar a melodia dura de ‘Crash’, que entrou para a história do Oscar como o filme que impediu a vitória dada como certa do primeiro drama ostensivamente gay realizado por Hollywood.
Os oráculos não emplacaram seus prognósticos: a história de amor dos cowboys gays foi osso muito duro de roer, e a velha guarda da Academia, confirmando até cedo demais vaticínio deste crítico sobre mudar de vez em quando para ficar no mesmo lugar, se impôs na noite da tolerância, que resultou muito menos transgressora daquilo que se esperava.
‘Crash - No Limite’, drama sobre racismo e tolerância ambientado em Los Angeles durante 36 horas, levou ainda o Oscar de roteiro original (do próprio diretor Paul Haggis, roteirista de ‘Menina de Ouro’, por coincidência o ‘Crash’ do ano passado, quando atropelou na reta final o favorito ‘O Aviador’) e de montagem. Foi um dos quatro filmes que receberam três estatuetas cada durante a tradicional cerimônia realizada no Teatro Kodak de Hollywood.
‘O Segredo de Brokeback Mountain’, o grande favorito com oito indicações, também levou três prêmios, incluindo o de melhor diretor para o taiwanês Ang Lee, o de trilha sonora para o argentino Gustavo Santaolalla, que derrotou duas trilhas bem superiores a dele, assinadas por John Williams, e o de roteiro adaptado. Nenhum dos dois filmes ficou com os prêmios para os atores nominados. Como era esperado - e aqui no mano a mano não teve para mais ninguém -, Philip Seymour Hoffman foi consagrado por sua reencarnação do escritor homônimo em ‘Capote’.
Nos agradecimentos, Hoffman arfou no palco, admitiu sentir-se ‘transbordante’ e distribuiu ‘love, love, love’ em todas as direções. Ao final, como garoto crescidinho mas exemplar, dedicou o Oscar a sua mãe, ‘por ter sido capaz de criar sozinha quatro meninos’.
George Clooney foi um dos primeiros premiados da noite pelo trabalho coadjuvante em ‘Syriana’. Demonstrando enorme amadurecimento desde que foi eleito o homem mais sexy do cinema em 1997, Clooney se colocou mais ou menos como espécie de herói da resistência em Hollywood.
‘Eu diria que às vezes estamos um pouco fora de sintonia com o país’, admitiu emocionado o ator-roteirista-diretor de ‘Boa Noite, e Boa Sorte’, filme com seis indicações e nenhuma recompensa. ‘Mas fomos os primeiros a falar de AIDS quando todo mundo conversava baixo sobre o tema, ou a falar de direitos civis quando não era popular fazê-lo...Esta Academia deu um Oscar a Hattie McDaniel em 1939 (NR: atriz negra de ‘...E Vento Levou’) quando os negros se sentavam nas últimos poltronas dos cinemas.’
A inglesa sempre bela e meiga - e agora gestante enorme - Rachel Weiss faturou mais um prêmio como a coadjuvante de ‘O Jardineiro Fiel’. E outra vez não deixou de reafirmar a generosidade e a valentia de Fernando Meirelles ao dirigir o filme. O Oscar de melhor atriz para Reese Whiterspoon por ‘Johnny e June’ foi uma das apostas conservadoras da noite.
Os outros ganhadores com três prêmios cada foram ‘Memórias de Uma Gueixa’ (fotografia, vestuário e direção artística) e ‘King Kong’, contemplado por efeitos visuais, edição e mixagem sonora. A Academia, em outra demonstração de que é progressista mas com freio de mão puxado - alguns diriam que é discreto eufemismo para covardia diante das pressões israelenses -, enterrou a polêmica em torno dos candidatos a melhor filme de língua não inglesa. ‘Tsotsi’, drama sobre violência numa grande cidade da África do Sul, atropelou o favorito ‘Paradise Now’, da Palestina.
Mais que merecidos os Oscar para o muito simpático documentário francês ‘A Marcha dos Pingüins’ e para a deliciosa animação com massinha ‘Wallace & Gromitt: A Batalha dos Vegetais’, nas respectivas categorias. Deploráveis, por outro lado, as três canções concorrentes. Não se pode dizer que venceu a menos ruim (já que este parâmetro também não existiu).
Num show conduzido com ironia e acidez pelo comediante Jon Stewart (se voltar, ano que vem estará mais solto e melhor) e marcado pelas intervenções brincalhonas dos atores (Tom Hanks simulando longo discurso de agradecimento, Ben Stiller fantasiado de criatura verde ‘invisível’, Will Ferrel com o rosto manchado de blush para apresentar a melhor maquiagem), houve outros momentos hilários, como a boa abertura de apresentação do novato Stewat por conta dos ex-apresentadores. Ou como o clipe bem-humorado - sarcástico, melhor dizendo - com sugestões de envolvimento gay no velho oeste cinematográfico, sobrando até para lendas do western como John Wayne, Gregory Peck e Charlton Heston.
E talvez o maior momento da festa, a homenagem com um Oscar honorário ao grande Robert Altman. A começar da apresentação do homenageado, pelas atrizes Meryl Streep e Lily Tomlin, inspiradíssimas ao descrever a essência da revolução que o diretor introduziu no processo de interpretação de atores, o improviso de inúmeros de protagonistas em cena.
Lenda viva do cinema de autor, o quase octogenátio Altman decidiu revelar nos agradecimentos que há uma década fez um transplante completo de coração.
‘Levo dentro de mim o coração de uma mulher jovem, ali pela casa dos 30 e poucos anos. Só não quis revelar antes porque em Hollywood não se costuma dar trabalho aos cineastas enfermos. E agora acho que esta homenagem veio cedo demais, já que pretendo trabalhar ainda por uns quarenta anos’, concluiu bem humorado o mítico realizador de ‘M.A.S.H.’, ‘Voar É com os Pássaros’, ‘Cenas da Vida’, ‘O Jogador’ e ‘Gosford Park’, entre tantos outros títulos de grande sofisticação temática e formal.
A cerimônia, com três horas e quase meia de duração foi transmitida ao vivo pelo canal a cabo TNT e pelo sinal aberto da Rede Globo que, sem qualquer respeito pelo cinéfilo/telespectador, entrou em rede com hora e meia de atraso, como se nada tivesse mais importância além do esclerosado Fantástico e do mobralesco Big Brother Brasil.
Confira todos os ganhadores do Oscar 2006:
Melhor Filme
Crash – No Limite
Melhor Diretor
Ang Lee, por O Segredo de Brokeback Mountain
Melhor Roteiro Original
Crash – No Limite
Melhor Roteiro Adaptado
O Segredo de Brokeback Mountain
Melhor Atriz
Reese Whiterspoon, por Johnny e June
Melhor Fotografia
Memórias de uma Gueixa
Melhor Ator
Philip Seymou Hoffman, por Capote
Melhor Filme Estrangeiro
Tsotsi (África do Sul)
Melhor Edição de Som
King Kong
Melhor Canção Original
"It´s Hard Out Here For a Pimp", de Ritmo de um Sonho
Oscar Honorário
Robert Altmann (pelo conjunto da obra)
Melhor Som
King Kong
Melhor Trilha Sonora
O Segredo de Brokeback Mountain
Melhor Direção de Arte
Memórias de Uma Gueixa
Melhor Documentário
A Marcha dos Pingüins
Melhor Documentário Curta-metragem
A Note of Triumph – The Golden Age of Norman Corwin, de Corinne Marrinan e Eric Simonson
Melhor Atriz Coadjuvante
Rachel Weisz, por O Jardineiro Fiel
Melhor Maquiagem
As Crônicas de Nárnia – A Feiticeira, o Leão e o Guarda-roupas
Melhor Figurino
Memórias De Uma Gueixa
Melhor curta-metragem em animação
A Lua e o Filho – Uma Conversa Imaginária
Melhor Curta-metragem
Six Shooter, de Martin Mcdonaugh
Melhor Animação
Wallace & Gromit – A Batalha dos Vegetais
Melhor Efeito Visual
King Kong
Melhor Ator Coadjuvante
George Clooney, por Syriana – A Indústria do Petróleo