Com lançamento inicialmente previsto para 8 de abril, ‘Reencarnação’ teve estréia trazida para o feriado de Sexta-Feira Santa. O que dizer dessa manobra antecipatória dos distribuidores, a não ser que foram influenciados por um transe de marketing metafísico?
Algum gênio estrategista deve ter intuído que esta história bem poderia ‘reencarnar’ - em chave de contemporânea pós modernidade caça-níquel - os grandes sucessos ‘bíblicos’ que em outros tempos fizeram enorme sucesso de bilheteria neste período de celebrações cristãs.
Porque, grosso modo, ‘Rencarnação’ tem a fé como tema ou sub-tema, aqui não importando a ordem dos produtos. Ou melhor, importa sim, já que o enfoque da perda (e como lidar com ela) sai bastante prejudicado.
Um homem, Sean, faz seu cooper matinal num Central Park esvaziado pelo inverno rigoroso e imaculado. Ele vai morrer logo em seguida, no exato momento do nascimento de um menino em outro ponto da cidade.
Dez anos depois, a bela e ainda inconsolável viúva Anna (Nicole Kidman) curte em família luto fechado, embora assediada bem de perto por Joseph (Danny Huston, filho do diretor John Huston), que fielmente lhe faz a corte.
Justo na noite em que ela afinal se rende e vai anunciar o enterro do passado doloroso e a abertura para o presente com Joseph, entra em cena, meio que saído do nada, um garoto que se diz chamar Sean (Cameron Bright).
Ele tem uma mensagem curta, mas altamente subversiva para a vida dos principais envolvidos. Ele diz que é Sean, o falecido marido de Anna, e que ela não deve se casar novamente. Depois da surpresa inicial, o desconcerto e a incredulidade.
Seria um perverso jogo infantil? Estranhamente, porém, como se fosse o Sean autêntico, o menino sabe coisas da intimidade de Anna que terminam por fragilizá-la novamente. A esta altura, definindo o estado de espírito da personagem, há o magnífico plano seqüência de quase quatro minutos (aplaudido em cena aberta na premiére mundial no ultimo Festival de Veneza) com a câmera fechada em close no rosto de Nicole Kidman.
Ela assiste um concerto (nada menos que Wagner), mas está abstraída, inicialmente lidando com a dúvida. Em seguida passa à turbulência interna e logo à certeza de que o menino de fato é Sean reencarnado - todas estas nuances surgem expressadas e garantidas pela maturidade de Nicole, ainda não totalmente reconhecida por quem não consegue enxergar, além da perfeição dos traços, sua enorme qualidade de atriz dramática.
A astúcia inicial do roteiro, do próprio diretor Jonathan Glazer, em colaboração com Jean-Claude Carrière (o lendário colaborador de Luis Buñuel), contrapõe a crescente convicção de Ana - ela quer acreditar - à percepção das pessoas ao redor dela, que consideram a novidade uma impostura. Afinal de contas, Anna é mesmo tão frágil quanto imagina, e está disposta a acreditar no impossível.
Essa ambigüidade que direciona boa parte do filme é o que sustenta a trama durante algum tempo. Ambigüidade, por exemplo, quando Sean se despe e entra na banheira onde Anna já está, também nua. Há uma troca de olhares que tanto pode ser de um casal de namorados como da mãe para o filho. Ambigüidade, por exemplo, quando o noivo Joseph, liberando antigas e novas tensões acumuladas em anos de rejeição, investe com selvageria contra o garoto (que ele enxerga adulto).
Embora sem sucesso, há várias influências tentando conviver harmonicamente em ‘Reencarnação’. Mais ou menos perceptíveis, elas são de resto esnobes, pesadas e contraditórias. Como a frieza emprestada do olhar clínico de Stanley Kubrick. Ou como o corte tosado do cabelo de Anna - homenagem à atriz Falconetti no histórico ‘O Martírio de Joana d’Arc’, tratado sobre fé e ascetismo que o dinamarquês Carl Dreyer realizou em 1928.
Até o final, o filme envereda simultaneamente por diversos caminhos e não se decide por nenhum, como se os roteiristas não estivessem mais se entendendo. Há o triunfo da razão em cima do sobrenatural. Há uma outra alternativa, de inspiração romântica; e uma terceira, exatamente a pior porque tirada dos manuais de roteiro, um típico recurso que dá a impressão de ter sido imaginado a fim de esclarecer as coisas. Mas o único que consegue é confundir.
Sobre o diretor Glazer, o elogio que se pode fazer é que ele, superstar do cinema publicitário e dos videoclipes, faz o possível para evitar que os tiques formais de suas origens contaminem o filme. O resultado é uma catedral de elegância. Mas solene, vazia e confusa.