Este mais recente filme do ''homem de La Mancha'', Pedro Almodóvar, demorou quase dez anos para se materializar. E o resultado, como não poderia deixar de ser quando se trata desse transgressor espanhol, é plenamente autoral, muito afim do mundo pessoal do realizador.
O que a muitos agrada e a outros desagrada. ''A Má Educação'' é conceitualmente o retorno de Almodóvar ao território do ''thriller'' passional, trilhado em momentos irregulares como ''Matador'' e ''De Salto Alto'' ou brilhantes exercícios como ''A Lei do Desejo'' e ''Carne Tremula''.
O gênero, para o bem ou para o mal, é familiar a ele, embora não resulte tão interessante como em melodramas como ''Tudo Sobre Minha Mãe'' e ''Fale com Ela''.
A narrativa de ''A Má Educação'' - filme que abriu oficialmente o Festival de Cannes deste ano trovejando polêmica e dividindo a crítica - se estrutura em flashbacks que se retroalimentam uns aos outros, mesclando realidade e ficção, apresentando uma atraente dualidade de personagens cujo maior virtuosismo é a interpretação de um mesmo personagem (o Padre Manolo) por dois atores, na melhor tradição do bruxo Luis Buñuel de ''Esse Obscuro Objeto do Desejo'', e um mesmo ator para três personagens (Gael Garcia Bernal).
Seguramente este ''La Mala Educación'' é um Almodóvar irregular mas extremamente fascinante, talvez a obra mais cinéfila de um diretor que sempre está prestando homenagens ao cinema.
A tentativa de uma síntese do argumento, sem cair em discurso embrulhado e confuso, é absolutamente inócua e se arrisca a um itinerário sem volta. Mas tentar não custa. A princípio há um diretor de cinema que busca um tema para o próximo filme.
Um visitante inesperado se revela antigo companheiro de colégio, agora ator e autor de uma história inspirada nas experiências que ambos viveram naqueles tempos de infância, quando eles descobriram o amor, o medo e o refugio fantástico no cinema.
A partir desse reencontro, três histórias se desenrolam, histórias simultaneamente paralelas (em épocas diferentes, da repressão franquista à efervescência cultural na Madri dos anos 1980) e concêntricas, porque no fundo umas são reais e outras imaginárias, mas basicamente todas são a mesma.
Isto é, aquela história que enfrenta e une em laços de amor, desejo, rancor, culpa e separação desses dois personagens de um terceiro e determinante: o padre que, por ciúme, os separou quando crianças, e que com uma conduta sórdida marcou para sempre a vida de um deles.
Não apenas há, por via dessa sinopse, um filme dentro do filme. As histórias se abrem a outras histórias, os personagens se fragmentam em múltiplas identidades, alguns somente com existência em nível de relato, outros respondendo à vontade do realizador que não é apenas quem narra, mas também alguém que ali está observando até onde os seres da trama são capazes de chegar, movidos por seus vendavais emotivos.
O que começa como um conto de vingança e chantagem evolui para um tormentoso folhetim em que nada é o que parece. É um melodrama que alcança seus melhores momentos quando esta maneira que tem o diretor de mostrar o inenarrável se apresenta ao espectador através de uma imagem estilizada que humaniza os personagens e atos pouco frequentes na tela, como a pederastia ou a perversa figura da ''femme fatale''.
E onde temas do repertório almodovariano como homossexualidade e travestismo se colocam diretamente, sem a mediação de personagens femininos como ocorria em seus últimos filmes.
Enredo de intriga e paixão sexual, revestido com os habituais cuidados do diretor quanto ao visual, à sonoridade musical - Alberto Iglesias evocando Bernard Herrmann -, e ao precisoso detalhismo da direção de arte, ''A Má Educação'' não traz os habituais adereços kitsch do cineasta e nem força a mão no humor.
Entre os diversos acertos de um filme que também oferece debilidades está a prudente decisão de não se deter por muito tempo na crítica à igreja, soltando a rédea da imaginação delirante para muito além.
O roteiro assim evita o beco sem saída do filme-denúncia, que corria o risco de andar em círculos ao redor do tema do abuso, já esvaziado pelo próprio mea-culpa da Santa Sé acompanhado por polpudas indenizações.
Garcia Bernal, nenhuma dúvida a respeito, é um dos mais interessantes atores da atualidade não alinhados com o status hollywoodiano. Desafiado, se entrega a todos os complicados jogos propostos e trava um duelo com o próprio Almodóvar, resolvendo tudo com rara habilidade e talento.