Num momento em que o País ainda se encontra chocado com o caso de estupro coletivo de uma adolescente, a estreia de Paulina, de Santiago Mitre - nesta quinta-feira, 16 -, parece mais do que oportuna. O filme provoca rara oportunidade de discutir o tema da violação sexual em várias de suas implicações, psicológicas e sociais, inclusive. Não propõe saídas nem soluções fáceis. Pelo contrário. Mostra impasses, dúvidas, caminhos sem volta e o preço de resoluções inesperadas.
A protagonista empresta seu nome ao título em português da obra (em espanhol, chama-se La Patota, "a turma" e já foi filmado em 1960). Vivida por Dolores Fonzi, Paulina é uma jovem advogada, com carreira brilhante pela frente. Filha de um juiz chamado Fernando (Oscar Martinez), Paulina provoca espanto e irritação no pai quando lhe comunica que vai desistir da carreira acadêmica - e que poderia conduzi-la a cargo alto na magistratura - para se engajar num programa social numa região distante, fronteira da Argentina com o Paraguai e o Brasil. Lá, ela será professora de direitos humanos e de formação política para alunos carentes. É idealista, acredita no que faz. Entende que pode ser mais útil como professora rural de alunos pobres e explorados do que ocupando um posto universitário confortável e bem pago. Como dizer que está errada? Mas como culpar o pai, que deseja o melhor para a filha?
Enfim, Paulina é cabeça-dura e ninguém vai demovê-la do que lhe parece mais justo e útil do ponto de vista social.
O filme começa dessa maneira, e num estilo de molde a causar impacto: um longo diálogo entre pai e filha, filmado em tomada única. Bem construído, com frases e argumentos bem talhados, porém ditos de maneira muito natural. A câmera segue as expressões dos personagens, seus movimentos, e vai construindo a profundidade de suas personalidades. A filha, uma idealista teimosa, cheia de boas intenções, porém nada ingênua. O pai, um homem que já viveu a sua militância de esquerda, atingiu postos altos na sociedade e não alimenta muitas ilusões em relação ao gênero humano. Nada mais errado, no entanto, que tachá-lo de "reacionário" ou acomodado. Enfim, são dois seres humanos complexos os que são apresentados ao espectador. Estamos no âmbito do cinema narrativo de boa qualidade, com bom roteiro, diálogos críveis e intérpretes profissionais.
Nem por isso é um cinema careta. Mitre trabalha com planos elaborados e alternância de tempos para evitar uma linearidade rotineira. Então, vemos os fatos se desenrolarem de forma alternada, enquanto a personagem os vai revivendo em um depoimento. Num plano, tudo está ocorrendo na hora em que é mostrado; em outro, já se trabalha no âmbito da rememoração. E portanto na reelaboração de um trauma, como o vivido por uma professora de boas intenções em um meio rural um tanto mais rústico do que aquele em que ela se formara.
Há cenas de sala de aula. Essas mais previsíveis, porém nunca inverossímeis. A professora tenta convencer os alunos de que eles são agentes políticos ativos e não passivos. "Vocês são os patrões dos políticos, por incrível que possa parecer", diz. Mas um dos alunos a provoca: e quem exerce o poder na sala de aula? Eles, alunos, ou ela, a professora, que dita normas e estabelece as regras, por mais democráticas que essas pareçam. Esses pressupostos são importantes pois, como verá o público, Paulina, apesar de ter abandonado a carreira jurídica para se dedicar ao magistério dos pobres, é imbuída de um profundo senso de justiça. Tão profundo que fará dela, no limite, um ser incompreensível, como se aspirasse a uma santidade que ela própria é a primeira a negar.
Vítima de violência, Paulina comporta-se de maneira paradoxal. Irrita o pai, suas colegas de trabalho, seu noivo, que não suporta a situação. Esse ponto é decisivo no filme: Paulina é insuportavelmente passiva ou, pelo contrário, assume com radicalidade uma posição ativa, porém inesperada, que desafia as expectativas mais convencionais dos outros? Usando seu próprio corpo como baluarte, ou como trincheira de luta, propõe questões incômodas, tais como a distinção entre justiça e vingança - existe mesmo essa diferença? Ou, o que é a justiça quando aplicada aos pobres, às classes sociais mais desfavorecidas? Qual a autonomia sobre o corpo e por que provoca tantos problemas ao reafirmá-la? Mas também, quais os limites dessa autonomia - denunciar e levar culpados à punição é algo de foro íntimo ou existem questões sociais envolvidas? Ao optar pela impunidade não se está colocando em risco outras pessoas?
Pela quantidade de interrogações presentes no parágrafo anterior, dá para ver quão inquietante pode ser a professora Paulina e sua maneira de reagir a uma terrível agressão.
Desse modo, Paulina, o filme, em sua aparente simplicidade, é aquele tipo de obra que deixa a plateia em total prontidão para debater temas complexos. Costumamos ter pontos de vista fechados sobre várias questões espinhosas. Nesse filme, elas são revisadas, ‘problematizadas’, viradas ao avesso. Não se coloca em dúvida o quanto existe de ignomínia no crime em si. Mas, passado esse ponto fora de questão, há todo um pantanal de dúvidas sobre o que fazer e, acima de tudo, como prevenir para que sua repetição seja menos provável. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Confira o trailer: