Se você não sabe o que é um libertino, há duas opções. Dar uma espiada no Aurélio (''devasso, dissoluto, depravado, licencioso'') ou conferir o que pensa e faz a respeito o personagem de Johnny Depp em ''O Libertino'', em lançamento em Londrina. Acredite ou não, mesmo circunscrito ao texto, Aurélio às vezes consegue mais objetividade do que Depp.
Em fins do século 17, e logo após período de dura repressão, Charles II (John Malkovich, ''possuído'' por aquela lassidão típica de certa nobreza) é o rei de uma Inglaterra que comanda a partir de certo relaxamento de costumes.
É tempo da Restauração. Amigo do monarca, John Wilmott (Johnny Depp) é o segundo conde de Rochester. Alguém com talento como dramaturgo, mas com enorme carga de dissolução e libertinagem explícitos em seus textos venéreos alguém com insaciável apetite pela autodestruição muito antes que esta definição se tornasse conhecida.
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Isto fica bem claro num dos melhores momentos da narrativa, exatamente a sequência de abertura. Com evidente personalidade egocêntrica e manipuladora, Wilmott afronta a câmera e proclama um manifesto pessoal que não deixa ninguém insensível na platéia. Pena que o desdobramento a seguir em parte desautorize esta inegável peça de bravura cênica.
O argumento parte de 1675, com Wilmott e sua jovem mulher Elizabeth (Rosamund Pike) de volta a Londres após alguns meses de exílio. É certo que o rei tem planos para ele. E sugere que Wilmott escreva uma obra magna, algo que celebre seu reinado.
De fato, Charles quer mesmo é que o escritor seja para a corte o que Shakespeare representou para a rainha Elizabeth. Wilmott concorda com a encomenda, mas é evidente que o rei nem faz idéia do que o outro pretende. O enfrentamento entre ambos é inevitável.
Esta é uma das duas linhas principais da trama, adaptada de obra teatral pelo próprio autor, Stephen Jeffreys. A outra envolve o relacionamento entre Wilmott e Elizabeth Barry (Samantha Morton), jovem que pretende ser grande atriz numa época em que as atrizes eram mais conhecidas por hábitos morais pouco convencionais do que por habilidades no palco.
Barry é o protótipo da mulher independente, determinada a não se ligar a nenhum homem, ainda que este homem seja seu tão necessário guia artístico E pode estar aí a danação irreversível deste Pigmalião frustrado. Neste segmento, Depp e Morton são muito bons juntos. Pena que o filme não resolva bem as interações da dupla com os demais personagens.
Há duas maneiras bem distintas de conceber uma direção cinematográfica. Aquela que se sustenta na idéia da tela como uma janela para escancarar-se ao mundo e a outra, que se baseia no convencimento de sugerir muito mais que mostrar.
O diretor estreante Laurence Dunmore fica a meio caminho entre as duas, sem na verdade se identificar plenamente com nenhuma. Sua eleição estética fortalece esta hesitação e deixa dúvidas sobre a solidez de suas convicções. A obscura, turva fotografia com que geralmente retrata os movimentos de Johnny Depp não parece exatamente funcional a esta complexa celebração da sensualidade e do desespero.
A ambientação é magnífica, bem como o comentário musical de Michael Nyman, compositor sempre atento às filigranas históricas. E Johnny Depp parece cada vez mais mergulhado em desafios, aqui em outra oportunidade de brilho intenso.
Investido em veloz e furioso personagem morto aos 33 anos, devastado pela sífilis sob medida para novo salto sem rede de proteção, o ator surge equidistante do sedutor e do monstro, presença vulcânica que pode ser definida como o reverso dark do capitão Jack Sparrow de ''Piratas do Caribe'', ainda na telas da cidade.