A palavra 'paixão', além de seu significado mais óbvio, também é utilizada para denominar 'sofrimento prolongado'. E foi justamente este aspecto que o diretor Mel Gibson enfatizou em seu filme "A Paixão de Cristo", que estréia no Brasil, o maior país católico do mundo. Já bastante falado no Brasil devido às polêmicas que gerou na comunidade judaica norte-americana, o filme retrata as útlimas 12 horas de vida de Jesus Cristo de uma forma nua e crua jamais vista antes no cinema, sem economizar em cenas brutais e chocantes - qualquer filme de Quentin Tarantino perde nos quesitos violência e sangue derramado.
Como já foi citado, "A Paixão de Cristo" é um filme sobre o sofrimento de Cristo - e como ele sofre. Com menos de 10 minutos de projeção, o Messias já começa a apanhar, levando correntadas dos soldados que o capturam no Jardim das Oliveiras (Getsemâni), onde Jesus vai rezar após a última ceia - e lá resiste às tentações de Satanás, encarnado em uma figura andrógina. Chegando a Jerusalém - já com um abcesso no olho - é humilhado pelos Fariseus e plebeus, que também lhe espancam, acusando-o de blasfemia.
Mas o pior ainda estaria por vir, assim que o sol nascer (Jesus foi capturado à noite). É levado ao governador Romano da Palestina Pôncio Pilatos, um procurador do César, não vê culpa em Jesus, diante das acusações feitas pelos Fariseus. Sentindo uma pressão política, Pilatos transfere a responsabilidade ao Rei Heródes, mas este devolve Jesus a Pilatos, que resolve condenar Jesus, saciando a vontade do povo.
O rei do judeus é açoitado por dois sádicos soldados romanos em cenas de extrema violência. No começo, são usadas varinhas. Depois os soldados utilizam chibatas com pregos pontiagudos nas pontas. O resultado é o equivalente a levar uma garra de tigre nas costas. E o diretor riscou a palavra 'sutileza' de seu dicionário durante o filme. Os soldados chicoteiam o corpo de Jesus com estas armas e nacos de carne são arrancados fora, desfigurando seu corpo. Pra piorar o sofrimento (tanto do personagem quanto do público), a cena é muito longa. Parece interminável. E constata-se: Mel Gibson realmente apelou.
Irreconhecível, Jesus é apresentado por Pilatos à multidão que, ainda não satisfeita, pede a crucificação. O governador lava suas mãos e ordena que seus soldados façam o que o povo pede. Seguem-se as cenas de Jesus carregando a cruz pela via crucis até chegar no alto de Goldota, onde será crucificado. Neste trajeto, Jesus perde tanto sangue que até dá a impressão que ele não terá mais uma gota para ser derramada na cruz. Nos momentos de maior sofrimento, Jesus lembra fatos do passado através de flashbacks. Cinematograficamente, não seria um bom momento do filme para usar este recurso, no entanto eles são necessários para dar um respiro no público, que fica suficado e exausto diante de cenas tão cruéis e nauseantes.
Diante de tudo isso, deve-se esquecer todas as interpretações de Jesus Cristo em filmes anteriores ao assistir "A Paixão de Cristo". Também é recomendável não cometer o erro que muitos americanos estão cometendo de levar crianças para assistir ao filme - seria uma experiência traumatizante. Apesar de ter sido aprovado pelo Vaticano como a adaptação mais realista deste episódio bíblico desde então, talvez o filme não sirva de referência para as comunidades católicas de vido a sua brutalidade, mas isso só o tempo dirá.
Além do banho de sangue, outro ponto do filme que está getando muita polêmica é quanto à atribuição da culpa aos judeus pela morte de Jesus. Quanto a este ponto, o diretor se defende alegando que o filme é fiel aos evangelhos de Marcos, João, Mateus e Lucas, tanto que o é falado nos idiomas aramaico, hebraico e latim, tal qual no original, sem traduções que poderiam distorcer informações. Desta forma, alegar que o filme é anti-semita seria como dizer que as sagradas escrituras também são.
À parte dos aspectos religiosos e sociais, "A Paixão de Cristo" marca muitos pontos positivos em seu caráter cinematográfico: é plasticamente muito bonito, contando com um excelente trabalho de fotografia. A edição trabalha em sincronia com a trilha sonora, fazendo um casamento perfeito de música e imagem. A maquiagem, por mais tenebrosa que seja, também foi muito bem cuidada. Por fim, deve-se dar um destaque especial ao elenco, formado em sua maioria por italianos e romenos.
Exceptuando Monica Belucci, que pouco destaque tem como Madalena, os demais atores são pouco conhecidos, o que contribui muito para dar destaque ao personagem Jesus Cristo e não a uma celebridade hollywoodyana, o que ofuscaria a história. o super expressivo Jim Caviezel está ótimo no papel de Jesus, tanto nos momentos serenos dos flashbacks quanto nos momentos de martírio. Alguns momentos de sua atuação são inesquecíveis, como vê-lo trêmulo, à beira de surtar mas sem forças para isso, vendo Pilatos lavar as mãos; enfrentando a via crucis (sua expressão ilustraria muito bem a palavra 'sofrimento' no dicionário) ou morrendo na cruz dizendo "em Tuas mãos entrego meu Espírito".
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