As novelas densamente tramadas do escritor John Le Carré, que giram em torno de espionagem, corrupção moral e forças do mal trabalhando intensamente ao redor do mundo, com frequência perdem sua eficácia quando transpostas para o cinema.
As tramas resultam truncadas e a rica oferta de nuances se perde no processo. Premidos por exigências de caixa, os realizadores tentam privilegiar aquela porção que consideram mais ''cinematográfica'' das histórias, isto é, somente a movimentação física, isolando-a completamente da textura humana dos personagens, e sempre com constrangedora dificuldade.
Além disso, ou por causa disso, as provas sobre o comportamento nefasto de vilões, governos e corporações multinacionais acabam se perdendo num cenário enevoado e confuso.
''O Jardineiro Fiel'' é uma feliz exceção. E pelo menos um forte motivo deve ter levado à inspirada escolha do brasileiro Fernando Meirelles para conduzir este filme que já é um dos favoritos para o Oscar a ser entregue em fevereiro.
Já nominado ao prêmio de direção por ''Cidade de Deus'', seu estilo impressionista de filmar e sua pegada ''guerrilheira'' por trás das câmeras funcionaria muito bem quando utilizados para capturar a hipnótica urgência da ficção de Le Carré. E com certeza traria para o projeto um ponto vista menos britânico e mais Terceiro Mundo.
Não deu outra. Contratado para substituir Mike Newell, que preferiu dirigir o quarto Harry Potter, Meirelles demonstrou que seu pulso em ''Cidade de Deus'' era uma virtude indiscutível. Apenas precisava ainda dar uma volta olímpica no meio cinematográfico em grande escala.
E foi o que fez. ''The Constant Gardener'' vai na jugular exposta por Le Carré. A adaptação preciosa de Jeffrey Caine captura a essência da trama. Não é somente um grande filme. É um dos melhores filmes do ano, como antecipou a apoteótica recepção obtida no recente Festival de Veneza.
O projeto era ambicioso, já que se propunha alcançar, a partir de um fato pontual - quase um drama intimista - um conflito de grandes proporções e com alcance geopolítico.
O filme, como a novela, começa com um difuso incidente criminal que ocorre em remoto rincão da África, ao norte do Quênia. A incansável ativista inglesa Tessa Quayle (Rachel Weiss) é brutalmente assassinada, enquanto o médico africano que a acompanhava (Hubert Kounde) desaparece.
O marido dela, o inofensivo diplomata Justin Quayle (Ralph Fiennes), decide deixar por um tempo as aparências, os burocráticos afazeres de carreira e as prosaicas lidas de jardinagem para investigar o caso por conta própria, já que as autoridades do Alto Comissariado Britânico preferem que ele se mantenha distante.
As evidências indicam que se tratou de crime passional. Justin, inicialmente com aquela conhecida fleuma pedante, sabe que esta é uma possibilidade. Mas ainda assim vai em frente em busca da verdade com o auxílio de certos subterfúgios diplomáticos.
Agora já inteiramente informado sobre a performance política da mulher e disposto a substituir a passividade pela ação, ele percorre um angustiante périplo de conscientização através de três continentes, reunindo elementos para concluir que, por trás do crime, está uma terrível conspiração orquestrada por uma companhia multinacional farmacêutica, que usa mulheres africanas como cobaias em testes de medicamentos ainda em fase experimental.
O curso da narrativa é não linear, mas nada que possa assustar até mesmo o espectador mais condicionado pela lenga-lenga pedestre que Hollywood consagrou como opção preferencial para preguiçosos mentais. À medida que Justin avança (curiosamente em flashbacks) nas descobertas - sobre Tessa, sobre os fatos que envolveram a morte dela, sobre o grande amor que sentia pela mulher e que aumenta a cada dia -, o personagem se confronta mais e mais de perto com a sombria teia da corporação de fármacos.
Ele então se dá conta do enorme poder econômico, das incalculáveis fontes de recursos que transformam estas empresas mundo afora praticamente em nações autônomas, que nem de longe se importam em transformar o majoritário lado pobre do planeta em laboratório de testes para drogas de eficácia e efeitos colaterais ainda desconhecidos.
É neste terreno sinistro e atemorizante que Justin passa a se movimentar. Seja em Kibera, a grande favela do Kenia, seja em Londres, Amsterdam ou Berlim, seja de volta à subvida de refugiados no Sudão. Para afinal encontrar a mesma paisagem onde Tessa foi assassinada.
Em fundo e forma, ''O Jardineiro Fiel'' é multifuncional. Para onde quer que Meirelles aponte a câmera o resultado é no mínimo estimulante. É um destemido filme-denúncia lidando com material explosivo. É sincera apologia do mais desprendido ativismo político. É thriller eletrizante que sabe inclusive como reciclar alguns clichês do gênero. E é também uma terna, apaixonada história de amor.
O trabalho do iluminador César Charlone, com uma câmera menos ''nervosa'' do que em "Cidade de Deus"; e uma montagem menos fragmentada (de Claire Simpson) são essenciais para a obtenção do sentido de urgência e de veracidade documental. A África está inteira na tela, com sua explosão de cores e dores, embalada pela música de Alberto Iglesias, alternando suavidade e pulsações étnicas do continente.
Vendo a garra, a ferocidade, o humor, a paixão e a ternura com que Rachel Weiss reveste a sua Tessa, ninguém tem qualquer dúvida de que ela já esperava o papel: ''Eu sempre soube em que consistia o personagem, sabia inclusive onde e como poderia improvisar, criar novas falas'', disse na coletiva em Veneza uma entusiasmada e bela Rachel.
Ralph Fiennes, por sua vez dotado até a medula de um repertório de sutilezas, entrega um soberbo Justin Quayle, personagem que aos poucos se revela anti-imperialista e ''africanista'' sem nenhum esforço panfletário ou carga demagógica, de quebra ainda conservando aquele ar de herói romântico com o qual impregnou positivamente ''O Paciente Inglês''. Os dois desde já nas nominações do Oscar, alguém duvida?