Neste momento a internet está congestionada por fóruns poliglotas que discutem os variados matizes da alegada iconoclastia contida em ''A Bússola de Ouro'', a megaprodução que se instalou nos circuitos natalinos mundiais.
Mais uma vez a Igreja, a exemplo de tantas outras ocasiões - ''O Código da Vinci'' era até ontem a bola da vez - passa desnecessário e barulhento recibo de um material considerado perigosamente ateu, mas que somente apresenta pálido poder de fogo para sustentar polêmica de qualidade duvidosa.
A pergunta que orienta estas discussões é se o ateísmo do autor da obra original, escrita nos anos 1990 (a trilogia ''Fronteiras do Universo'': ''A Faca Sutil'' e ''A Luneta Âmbar'' completa a obra), foi acolhido com a virulência original no processo de adaptação, e se chegou ao público dos cinemas preservando as intenções críticas do autor, Philip Pullman. Bem, mesmo quem não leu esta narrativa de imaginação ilimitada pode afirmar com certeza que a fantasia que está na tela é por demais descabelada para conter algum perigo aos fundamentos eclesiásticos, de resto já tão abalados por perigos reais e imediatos, muito mais ameaçadores do que uma peça de ficção tão frágil como esta.
O universo mirabolante de ''A Bússola de Ouro'' envolve a menina Lyra Belacqua (a ótima Dakota Blue Richards), que estuda num internato e que, como todos, está ligada a um daemon, espécie de mascote. No caso das crianças, ele pode mudar de forma animal até adquirir o aspecto definitivo. Lyra tem também poderes especiais, e poderia pertencer a uma linhagem de bruxas.
Além disso, orientada pelo tio, Lord Asriel (Daniel Craig, que não diz a que veio) começa a ter contato com a existência de uma conexão entre este mundo e outros paralelos. Alguma coisa relacionada ao Pó, matéria que o Magistério e outras autoridades malignas não desejam que as pessoas saibam, pois colocaria em perigo seu domínio neste e em outros mundos.
O tal Magistério, com sinistras intenções, dedica-se ainda a sequestrar crianças. Lyra acredita ter encontrado uma amiga na Sra. Coulter, mas, na verdade, o personagem vivido por uma Nicole Kidman incrivelmente desperdiçada como vilã tem outros planos. Salva-se nela o glamour de star anos 30.
O filme, dirigido sem qualquer vestígio de alma por Chris Weitz, artífice de títulos tão dispensáveis como ''American Pie'', trata de buscar sempre e mais conexões com uma galeria recente de produções de corte fantástico como a saga Harry Potter e as menos votadas Crônicas de Nárnia.
Esta comparação é até um tanto forçada, já que a trama, fascinante em sua parte inicial, perde-se logo em elementos e conceitos obtusos que não estimulam muito o interesse do espectador. Além disso, há carência de intensidade dramática, faltam épica e emoção, e aquela sensação de que algo grandioso está em jogo. O andamento é nada além de soporífero, apesar do punhado de efeitos especiais.
O elenco de apoio, todos bons atores, é ostensivamente subaproveitado - veteranos de peso como Christopher Lee, Sam Elliott, Derek Jacobi, Tom Courtenay. E então volta a pergunta que (o marketing? a Igreja?) não quer calar: ''A Bússola de Ouro'' é um filme anticristão? Não, não é. Ou pelo menos não é explicitamente. Fique claro que falo do filme, não das novelas.
É claro que observadores mais atentos podem sacar simbolismos, eufemismos, e ver a Igreja retratada na organização sinistra do Magistério, e seu quartel-general uma espécie de Vaticano em versão barata. E mais a questão eternamente em aberto da existência da alma. E o livre-arbítrio que deve nortear a humanidade, dispensando qualquer freio inibitório.
Aqui entre nós: não se poderia fazer a leitura de um Darth Vader em ''Guerra nas Estrelas'' como uma espécie de Papa ou cardeal sinistro, ou que os obscuros oponentes de Harry Potter seriam sacerdotes à caça de consciências? E o que dizer da infinita galeria de sugestões religiosas processadas sub-repticiamente em ''O Senhor dos Anéis''? Se a paranóia tomar conta dos católicos urbi et orbi, não haverá orações a medir para exorcizar os fantasmas que saem frequentemente dos estúdios hollywoodianos.