Estreias

Genealogia da perda da inocência

05 dez 2003 às 14:14

Incluído na seleção oficial do Festival de Cannes deste ano, ''Sobre Meninos e Lobos'' foi exibido para a imprensa no último dia da mostra competitiva, um sábado com cara de final de festa, quando a maratona de imagens já tinha fustigado ao máximo a resistência física e mental dos jornalistas - e quem sabe do júri. Irreparável injustiça.

O filme, apesar do profundo impacto por força de uma complexidade dramatúrgica quase nunca vista no cinema americano, em muitos anos, acabou de certa forma esvaziado. Uma pena, um desperdício. Porque o que está na tela é para não esquecer nunca.


Se os medos e fantasmas mais recônditos da infância pudessem se materializar, eles naturalmente encontrariam seu lugar em ''Sobre Meninos e Lobos''. Este pesadelo aparece desde logo no filme, como que para prevenir a platéia sobre a natureza peculiar do drama que vai bater na tela nas próximas duas horas.


Drama tecido com peso e tonalidade talvez nunca vistos antes no cinema de Clint Eastwood, que trabalha a perda da inocência e através dela todas a vicissitudes da psiquê humana .


Relatar que esta é uma história policial com suas tramas de suspense e um clima arrepiante seria observar somente a superfície deste caudaloso e profundo ''Mystic River'', seria empobrecer um filme de descomunal força emotiva e de uma quase mágica sedução que flui tanto de suas situações como de seus personagens.


Dificilmente pode se imaginar sequência mais traumatizante do que aquela que abre a narrativa, premonitória da tragédia e que nos coloca no coração da história. Jimmy, Dave e Sean são três meninos de um bairro da periferia operária de Boston. Eles jogam hockey na rua, e se divertem escrevendo seus nomes no cimento fresco quando um carro pára diante deles.


Fazendo-se passar por policiais, dois homens levam Dave, justamente o mais tímido, para um local que não é a delegacia. Na verdade são dois pedófilos que vão manter o menino sequestrado por vários dias (cenas que o roteiro tem a delicadeza de não mostrar), até que ele consegue escapar. Os três tomam caminhos diferentes.


Corte para quase três décadas mais tarde. Jimmy (Sean Penn), o mais duro do grupo, é agora um homem casado, com três filhos, e de quem logo se sabem habilidades que o ligam ao crime. Sean (Kevin Bacon) é agora policial, às voltas com a recente separação de sua mulher grávida. E Dave (Tim Robbins), com a sequela de um severo dano psicológico, trata de viver sua vida com a família, mas seu andar carrega peso e angústia de alguém que nunca mais será o mesmo.


De repente, eles se reencontram novamente por causa de uma outra tragédia: a filha de 19 anos de Jimmy é encontrada morta. O angustiado pai voltará a frequentar sua roda de delinquência para tentar achar o assassino. Sean é o encarregado das investigações. E Dave aparecerá em casa na noite do crime, como as mãos ensanguentadas e um corte no peito. O círculo começa a se fechar.


Tudo mudou, mas ao mesmo tempo nada saiu do lugar. Para Eastwood, o passado é uma mancha entranhada, um câncer no presente, que se instala, se alastra e então envenena os organismos. Uma espécie de bomba de ação retardada.


Filmes como ''Um Estranho Sem Nome'' (1972), ''Impacto Fulminante'' (1983), ''Os Imperdoáveis'' (1992) e ''Um Mundo Perfeito'' foram feitos permeados por esta idéia de um passado invasivo e maleficamente transformador. Mas não há, como neste ''Sobre Meninos e Lobos'', registro imagístico tão avassalador sobre a questão da pedofilia e suas nefastas consequências.


Adaptado de uma novela de Dennis Lehane , o roteiro tentacular de Brian Helgeland (Oscar por ''L. A. Confidential'') vai fundo e sem piedade nesse trio de personagens que se debatem num inferno cotidiano, possuídos por seus demônios interiores.


Os crimes que ocorreram, antes e agora - e aqui é onde ''Sobre Meninos e Lobos'' se articula como uma tragédia shakesperiana -, são metafóricos de uma cultura que funciona a partir de elos tribais, em que a violência sobre o mais fraco e a vingança convertida em virtude são vistas como recursos naturais. Por isso o ''rio místico'' do título: um lugar obscuro, turvo, um lugar onde os protagonistas enterram seus pecados e lavam suas culpas.


Para compor esta narrativa, Clint Eastwood aposta e acerta por um ritmo de progressão dramática a partir de clássica planificação, em que se multiplicam os aqui necessários planos aéreos, que não por ocaso nos mostram este microcosmo de perdas e danos emocionais.

Um elenco escolhido a dedo para um filme fadado a colher interpretações de exceção. Penn, Robbins e as mulheres, Marcia Gay Harden e Laura Linney (suas personagens são determinantes para a demarcação dos limites das tragédias familiares e individuais) estão extraordinários. Será muita miopia se Hollywood não reconhecer os muitos méritos desta obra-prima e deixar de acenar com muitas nominações, de melhor filme à montagem.


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