Um melodrama é um filme de gênero. Assim como uma trama de ação, ou uma comédia ou um argumento de suspense. Igual ao suspense, o melodrama é gênero terrivelmente propenso à manipulação da platéia, cuja tendência é rezar contrita pela cartilha da lágrima do protagonista em primeiro plano.
É a síndrome do contágio. ''À Procura da Felicidade'', em cartaz no circuito nacional, oferece este contágio através do personagem de Will Smith. Mas ele é manipulador hábil.
Já é conhecida a destreza e a capacidade que tem Smith tanto de chorar quanto de aplaudir a si mesmo, em show tanto para o público quanto para seus colegas votantes da Academia. Estamos, portanto, diante de um híbrido, o melô temperado, não exatamente ortodoxo, mas com liberdade suficiente para deixar a maior área de manobra possível para a performance histriônica de seu intérprete.
Hoje em dia a informação ''baseada em fatos reais'' no início de um filme é quase uma garantia de que os fatos em questão foram suficientemente manipulados para assegurar sua eficácia dramática, ou para ser mais preciso, seu bom desempenho nas bilheterias.
''Em Busca da Felicidade'' tem roteiro inspirado na vida de Chris Gardner, que de modesto vendedor classe média chegou a sem-teto nos tempos de vacas magras das chamadas reaganomics, a política econômica do governo Reagan nos anos 80.
Na casa dos 30, Gardner (Will Smith) sobrevive vendendo scanners médicos em São Francisco. As vendas vão mal. E ainda por cima sua mulher (Tandie Newton), megera consumada, o maltrata porque o incansável e infeliz não leva dinheiro para casa. Ela o abandona. Ele se volta para o filho de cinco anos (Jaden Christopher Syre Smith, filho na ficção e na vida real). São despejados. Literalmente na rua da amargura, Gardner e o garoto passam o diabo, com frequência dormindo em banheiros públicos e amargando a hostilidade de minorias ao redor - visto por este ângulo e pensando bem, não seria o filme o mais racista, cruel e cínico dos últimos tempos? E ainda por cima misógino, pelo tratamento dado à mulher (a única personagem de ficção na história)?
Mas Gardner sempre foi um sujeito hábil com os números, com as contas, e casualmente acaba se envolvendo com Wall Street, como agente da bolsa. Durante seis meses trabalhará como um estivador e não verá a cor do dinheiro, ao contrário dos outros no alto dos edifícios, competidores leais, inteligentes, gentis, solidários, gente de família, todos encantados com ele, a convidá-lo para o setor VIP nas partidas de beisebol.
Todos brancos e milionários. Como Gardner gostaria de ser. Mas para que os sacrifícios rendam frutos ele terá que correr muito, se multiplicando por vinte se puder. E vem a recompensa, expressa nos títulos finais anunciando que o protagonista teve tanto êxito no mundo das finanças que conseguiu conquistar uma dessas cifras astronômicas.
Este épico de bolso do capitalismo selvagem começa como comédia dramática, e justiça se faça ao italiano Gabriele Muccino (''O Ultimo Beijo'') em sua estréia em Hollywood: ele sabe conduzir esta primeira parte com graça, leveza e até sedução. Mas o que principia bem perde fôlego de esperteza e ganha sobrecarga de forçado dramatismo tipicamente hollywoodiano, anulando qualquer possibilidade de empenho autoral do diretor, que segue estritamente o manual.
Os Smith, pai e filho, reeditam dupla famosa dos anos 1970, quando papai Ryan O'Neal e a filhinha Tatum já buscavam a felicidade em ''Lua de Papel'', de Peter Bogdanovich. O nepotismo funciona bem também aqui, neste lado da trama que aborda - com alguns excessos - a relação pai e filho sob circunstâncias adversas.
''À Procura da Felicidade'' é isto mesmo que o título pretende: a busca, não a conquista da felicidade, embora a rubrica previsibilidade conduzirá ao final que todos desejam - e que aconteceu de verdade, segundo o mais ideológico dos sonhos americanos, o do self-made man. E metaforicamente vale a busca da felicidade, o Oscar, para Will Smith, anteriormente nominado e preterido pela interpretação em ''Ali''.