Faz parte da celebração de marketing globalizado esta pomposa encenação planetária. De tempos para cá, e cada vez mais, os grandes conglomerados do entretenimento que comandam as majors de cinema americano elegeram a simultaneidade como prato principal do banquete.
Quantos mais sentarem à mesa vale dizer, na platéia ao mesmo tempo, estimulados por uma engrenagem mediática avassaladora, mais deve girar a roda da fortuna. Pelo menos em tese.
A estréia de ''Cruzada'', com cerca de 400 cópias no Brasil, ao mesmo tempo estará cobrindo um circuito internacional de amplo espectro, e deve ser o centro das atenções e de alguma polêmica nas próximas semanas. Pelo menos até a entrada em cena do derradeiro suspiro de uma certa epopéia galáctica...
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''Cruzada'' é uma decepção, sem no entanto ser uma frustração. Depois do impacto positivo com ''Gladiador'', que o mesmo Ridley Scott realizou em 2000, o gênero épico-histórico tinha grandes esperanças. Não de ser reconduzido novamente à passarela como top model, mas pelo menos de continuar digerindo e atualizando receitas de entretenimento hollywoodiano: uma figura central heróica com sólido estofo humano, uma reconstituição de época impecável (assombrosas batalhas incluídas) e uma intriga que não fosse apenas sobre emoções à flor da pele, mas com direito a alguma cota de debate palaciano com ressonâncias contemporâneas.
Ou seja, aquela antiga, primária e ainda aproveitável definição de História: a ciência que observa fatos do passado na tentativa de explicar as turbulências do presente.
E então vieram o irregular ''Tróia'' e o desastre ''Alexandre'', jogando uma ducha de água fria neste revival do drama de época. Muito por isso, as esperanças ficaram acumuladas sobre ''Cruzada''. E também por isso, a decepção agora chega com o afresco histórico de Scott.
A notar que o diretor, neste momento em cruzada comercial mundo afora para divulgar seu filme como contratado do estúdio (Fox), não esconde que a versão em DVD a ser lançada em 2006 terá quase uma hora a mais, tempo podado na montagem final a versão nas salas brasileiras é de 145 minutos.
França do século 12, ano 1186, tempo de trégua entre cristãos e muçulmanos entre a 8 e a 9 cruzadas. Depois de perder tragicamente primeiro o filho, depois a mulher e a fé como consequência, o jovem ferreiro Balian (Orlando Bloom, já não mais imberbe, mas ainda longe da maturidade que o personagem requeria), em plena crise de consciência, recebe a visita de um cavaleiro, o nobre Sir Godofredo de Ibelin (Liam Neeson).
Ele vem de Jerusalém. Mas não é só. O visitante informa a Balian que é seu pai. Os dois, e mais o meio-padre, meio-soldado Hospitaller (David Thwelis), seguem então para Jerusalém onde deverão tomar posse de algumas terras. No caminho, Balian é nomeado cavaleiro e Godofredo morre.
Numa Jerusalém vivendo delicados tempos sócio-políticos, Balian se torna amigo do rei Balduino IV (Edward Norton), que está sendo consumido pela lepra e esconde o rosto atrás de uma máscara, enquanto sonha com a utópica convivência pacífica entre cristãos e muçulmanos.
A bela, enigmática e casada Sibila (Eva Green), irmã de Balduíno, logo inicia um romance com Balian. Nos bastidores da corte, o conselheiro Tibério (Jeremy Irons), dá força às idéias conciliadoras de Balduíno, idéias sabotadas pela belicosa dupla Guy de Lusignan (Marton Csokas) e Reinaldo (Brendan Gleason), cristãos da confraria dos Cavaleiros Templários.
Os acontecimentos se precipitam e a chamada guerra santa é retomada com fúria. Os exércitos de Saladino (Ghassan Massoud), rei dos muçulmanos curdos, sitiam Jerusalém. Balian se vê obrigado a comandar a defesa da cidade.
Muito provavelmente como consequência desta inexplicável operação tesoura a maior duração não tem sido obstáculo para o sucesso no box office, desde que o público seja fascinado pela idéia e a compre, como comprova a trilogia recente de ''O Senhor dos Anéis'' , há sérios problemas na construção dramática.
Os acontecimentos são precipitados, não pelo estilo de narrativa, mas por uma montagem de comportamento abrupto. Assim, idéias substanciais como jornada pessoal e espiritual, redenção, dever e honra, que deveriam reger as relações entre Balian e os demais personagens à sua volta, acabam subdesenvolvidas.
Um exemplo logo de saída é a ligação pai-filho entre Balian e Godofredo, que tão cedo se perde (e o filme parece iniciar aí o seu irrecuperável desnível).
Outro subtema que se esgarça sem conserto é o antagonismo entre Balian e Guy de Lusignan, retratos caricaturais arrematados como alguma coisa do tipo ''não se entendem porque são de estratos sociais diferentes''. Ou, pior ainda, o arremedo de relação afetiva entre Balian e Sibila, reduzida a um quase nada. A bela moça, a francesa descoberta por Bertolucci em ''Os Sonhadores'', já disse que espera ser bem mais vista na tal versão do DVD.
Há uma certa preocupação do roteiro em dar maior visibilidade às batalhas dialéticas do que ao corpo a corpo dos embates entre ''fiéis'' e ''infiéis'', ambos devidamente digitalizados para ganhar proporções massivas.
Nesse sentido, a construção do perfil dos personagens optou por eleger os muçulmanos, comandados pelo honrado Saladino, como o lado positivo neste épico, ficando a vilania por conta dos cristãos, aqui retratados como fundamentalistas, bárbaros, corruptos e gananciosos não é difícil que o filme chegue à cabeceira de Osama Bin Laden e fique lá, em caráter permanente.
Mas não basta ser liberal e bem pensante. A revisão histórica, o politicamente incorreto não se faz assim só em combates em câmera lenta, a toque de caixa ou em dialética de estúdio. Os personagens aqui não estão matizados e nem contraditórios, o conflito é raso embora com aparência de solenidade.
A denúncia do fanatismo religioso não tem força, e o paralelismo com qualquer realidade atual, quando suspeitada, acaba sendo mera e pequena coincidência. Assim, tudo o que parece tomada de posição é na verdade um credo impessoal do diretor Scott. Agora é esperar o DVD com sofreguidão.