Faltavam dois dias para o final do Festival de Veneza, no mês passado, quando ‘A Noiva Cadáver’ foi apresentado fora de concurso. Foi tudo uma apoteose – a sessão para a imprensa, o concorridíssimo tapete vermelho antes da exibição de gala para convidados e público, o corre-corre no assédio ao diretor, somente comparável ao cerco implacável a George Clooney.
E tudo plenamente justificado: o filme é uma deslumbrante fábula negra em animação feita com massinha e fotografada em ‘stop motion’, quadro a quadro como ‘Wallace & Gromit’, ainda em exibição na cidade. E quem dirige é o sempre fascinante Tim Burton, um mestre na criação de universos poéticos ultradark.
Não é nada fácil situar este filme. Por um lado está construído por imagens magníficas e observações impregnadas do melhor e mais original humor negro.
Mas em alguns poucos momentos a narrativa se equilibra perigosamente, em parte porque o tema da necrofilia mais ingênua, menos ‘aterrorizante’, não é nada comum e por isso difícil de sustentar; e em parte porque nem todas as canções compostas pelo eterno parceiro de Burton, Danny Elfman, mantêm o mesmo nível de inspiração, deixando a narrativa com um ritmo ligeiramente mais frouxo até mais ou menos a metade.
A premissa do argumento, baseado numa fábula judeu-russa, é muito divertida. No centro da trama está o desventurado Victor (voz e até mesmo o look de Johnny Depp), um jovem prestes a se casar com a inocente Victoria (Emily Watson), em união arranjada pelos pais dela (Joanna Lumley e Albert Finney) e dele (Tracey Ullman e Paul Whitehouse), estes novos ricos vendedores de peixe e praticantes de alpinismo social.
Tímido e atribulado, nosso anti-herói Victor não é exatamente o genro que os futuros sogros esperavam. Não bastasse a situação delicada, surge em cena outro possível pretendente para Victoria, o distinto Lord Barkis (Richard E. Grant).
Mas o destino intervém neste quadro. Na véspera do casamento, quando Victor vai sozinho a um bosque ensaiar sua participação nas bodas, ele coloca o anel naquilo que pensa ser um galho seco e então faz o juramento de amor. Mas na verdade é o dedo de uma noiva morta (Helena Bonham Carter) que apenas aguardava o dia em que lhe dedicariam aquele ritual.
Victor agora é o companheiro da noiva-cadáver. A ação sai do mundo dos seres vivos esquemáticos e calculistas, representado por cores irremediavelmente ‘mortas’ e muito, mas muito chato, e ingressa no universo dos mortos, com cores ‘vivas’ e vistosas, e muito, mas muito mais alegre, em permanente estado de festa como em Finados no México – este contraponto é apenas um entre os diversos achados de estéticos e de humor que Burton e seu co-diretor Mike Johnson injetaram em ‘Corpse Bride’. Somente o número musical produzido por Elfman para esta seqüência já justificaria uma ida ao cinema.
A literatura de Dickens, Poe e Shakespeare, este com seu épico romântico ‘Romeu e Julieta’; o pioneiro designer de monstros Ray Harryhausen; o universo horrorífico do expert italiano Mario Bava; a homenagem a atores ícones do terror cinematográfico como Bela Lugosi, Peter Lorre e Vincent Price, e o visual gótico da produtora inglesa Hammer – há um acúmulo de citações a se eleger prioritariamente ou não, de acordo com a maior ou menor quantidade de informações e referências prévias.
Mas neste sentido nada aqui é excessivo a ponto de comprometer a imensa capacidade poética, sugestiva e onírica entranhada nestas imagens. Para aqueles que já desfrutam há tempos da inesgotável sofisticação do Burton, ‘A Noiva-Cadáver’ é mais um momento para saudá-lo de novo nas salas, que nesta ocasião deverão estar ornamentadas com arranjos mistos: flor de laranjeira e crisântemos...
>> Leia entrevista com o diretor Tim Burton na Folha de Londrina