Antes mesmo de sua estréia, "Carandiru", mais recente longa-metragem do veterano diretor Hector Babenco, começou a se anunciado como "o novo Cidade de Deus". Esta foi uma comparação precipitada, que só pode ser válida em vista da expectativa de grande bilheteria - algo que será obrigatório para ressarcir os 12 milhões investidos, além de dar lucro. Os dois filmes são bem diferentes em diversos aspectos.
O aspecto de maior diferença é com certeza o ponto de vista moral da criminalidade. Enquanto "Cidade de Deus" glamouriza o crime, sublimando a bandidagem de personagens como Zé Pequeno, Bené e Cenoura, que são elevados ao patamar de heróis da favela; em "Carandiru" os criminosos não são endeusados, mas sim humanizados.
Não foi uma escolha sentimental, até porque o filme é baseado no livro "Estação Carandiru", escrito pelo Dr. Drauzio Varela, em que o médico relata sua odisséia pelo presídio onde realizou um grande projeto de prevenção à AIDS. O ponto de vista não poderia ser outro, senão dos presos, com quem o médico teve mais contato.
Neste sentido, é óbvio que será enfatizado o lado positivo daqueles 7.000 detentos, afinal de contas o negativo todo mundo já sabe: se eles estão no Carandiru, é porque cometeram crimes. Seu Chico, personagem de Milton Gonsalves, até tem uma frase que justifica isso: "aqui dentro ninguém é culpado" - reflexões não vão faltar a respeito desta afirmação.
Mas não só porque foi baseado em um livro, não quer dizer que o filme seja 100% fiel a o que lá está escrito. Até porque o diretor gosta de ser conhecido como "um contador de histórias". "Este não é um filme documental", alega Fabiano Gullane, produtor do filme. "A única cena realmente documental é a da implosão do complexo Carandiru, no final do filme. O resto é apenas baseado no cotidiano do presídio, podendo ser mais fiel ou não à realidade. Alguns personagens do filme existem de fato. Outros foram criados, como por exemplo o matador de aluguel Peixeira", completa.
Novela da vida carcerária no Brasil
"Carandiru" não tem personagem principal. Há um personagem condutor, que é o Doutor (o ator Luiz Carlos Vasconcelos, que no filme não tem nome, mas todos sabem que ele está representando o Doutor Drauzio). É o médico que transita entre os detentos, a diretoria do presídio e (subjetivamente) o público. "personificar a pessoa do Drauzio nunca foi a intenção do Babenco. Até porque o importante é lembrar do trabalho que foi feito pelo médico, que é muito mais importante do que a pessoa", justifica o ator revelação Milhen Cortaz, que interpreta Peixeira.
Além do médico há cerca de 20 personagens que dividem a atenção no filme. No pavilhão amarelo estão os detentos condenados por assassinatos, como o já citado Peixeira, Barba (André Ceccato), Fuinha (o falecido rapper Sabotage), Lula (Dionísio Neto), Dadá (Robson Nunes), Ezequiel (Lázaro Ramos), Zico (Wagner Moura) e Deusdete (Caio Blat).
Este último destoa dos demais, pois é um assassino com "carinha de neném", e isto foi muito bem sacado para o filme. Afinal de contas, não precisa ser um maloqueiro feioso para cometer um assassinato. Quantos jovens bem apessoados de classe média já não foram parar no xilindró por que simplesmente perderam a cabeça ou por que resolveram vingar a morte ou o estupro de algum parente (como no caso dele)? Em outra ala estão os assaltante de carros-fortes Claudiomiro (Ricardo Blat) e Antônio (Floriano Peixoto), parceiros do crime que continuam sendo amigos inseparáveis na prisão. Estes também são pessoas comuns, pais de família, que simplesmente ganhavam a vida de forma ilícita.
A ala dos travestis talvez seja a que chama mais a atenção depois dos assassinos. Nela está Lady Di. O grande trunfo deste personagem é o ator que o interpreta: Rodrigo Santoro, que começou a carreira com fama de galã, mas que também interpreta papéis sérios com talento - vide as ótimas atuações em "Bicho de Sete Cabeças" e "Abril Despedaçado", que já confirmavam que este jovem não é apenas um rostinho bonito. Ele faz par com Sem Chance (Gero Camilo), médico do presídio com quem se casa.
Na diretoria estão Pires (Antonio Grassi), o diretor do presídio, além de Nego Preto (Ivan de Almeida), que nem chega a ser um membro da diretoria efetivamente, mas sim um detento que teve bom comportamento e acabou ocupando um cargo de carcereiro. Muitas vezes é ele quem coloca ordem durante momentos de tensão, como na cena inicial, em que resolve uma violenta discussão entre Lula e Peixeira. Correm por fora parentes e esposas dos presos, que aparecem nos flashbacks e nos dias de visita (o domingo, dia mais feliz para os presos). Opa! não podemos esquecer dois presidiários "gente boa": o sábio Seu Chico (Milton Gonçalves) e o carismático Majestade (Ailton Graça), talvez o único que se aproxime da imagem de "bandido com glamour" de "Cidade de Deus".
Todas as histórias destas pessoas fluem de uma forma tão espontânea que nem notamos que o filme tem quase duas horas e meia de duração. A meia hora final traz o ponto mais aguardado: o massacre dos 111 presos, ocorrido em outubro de 1992 e que até hoje não ficou bem explicado. A tragédia, como não poderia deixar de ser, parte do ponto de vista dos presidiários. Pouco antes de subirem os créditos, ao final do filme, aparece uma frase do Dr. Drauzio que justifica esse ponto de vista: "Somente os presos, os policiais e Deus sabem o que realmente aconteceu no Carandiru em outubro de 1992. Eu só ouvi os presos".
Assim como aquele trágico episódio, o filme também deixa lacunas abertas, especialmente na interpretação das histórias das vidas de vários presos. "É importante que se reflita sobre o que é visto na tela, aquela situação da vida carcerária no Brasil. Pois as interpretações são das mais diversas. Cabe ao público completar estas lacunas", aponta o ator Ricardo Blat.