Com a estréia na última semana de 2006 em Hong Kong, Coréia do Sul, Bolívia e Uruguai, restando somente a Itália no primeiro fim de semana de janeiro, já não há praticamente nenhuma área mercadológica sobre a superfície da Terra que não tenha feito contato imediato com esta mais recente trama da saga quarentona de James Bond, o espião autorizado a matar segundo licença que lhe confere a tríade numérica 007.
É certo, a esta altura com mais de US$ 400 milhões acumulados em trinta dias de bilheterias internacionais, que a vigésima-primeira peripécia do globetrotter espião inglês preencheu as expectativas da indústria. E, bem significativo para os produtores, muito mais com a cara – nova, novíssima – do que com a coragem, aqui ainda em período probatório entre titubeios profissionais e vacilos do coração – leia-se ingerência de cupido.
Castigados pelo tempo, vergados pelos anos, os homens que anteriormente foram investidos nas duas dezenas de missões impossíveis passaram a se dedicar a tarefas menos complexas, mais de acordo com suas (des) capacidades físicas depois de tentar salvar o mundo.
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Ocidental, bem entendido. Baseado nas escrituras de Ian Fleming, Bond foi um produto de consumo muito popular na década de 1960. O Bond primitivo, Sean Connery, era o individuo frio, duro, inclemente, impiedoso, erotômano. O ator escocês, ainda imbatível na caracterização do personagem, deu vida a um individuo de talhe físico exuberante, chegado à bebida e ao sexo desmedido numa época pré-Aids, de abertura e liberação, tempos hippies, paz & amor, make love not war.
E foi a guerra, mais precisamente a fria, aquela que bipolarizou o planeta, que encontrou em 007 o veículo mais afinado com a manipulação das massas. Não por acaso os inimigos de Bond eram também os inimigos do Ocidente, em meio ao acirramento das tensões EUA-URSS e a angústia de outro possível holocausto nuclear.
Mas o ator escocês, que já chegou maduro, não apenas envelheceu para o papel que acima de tudo exigia muita mobilidade, como também tinha planos para colocar seu talento óbvio a serviço de roteiros menos comprometidos com a urgência de biomassa ou o imperativo da peruca.
Então, no rastro da flacidez de Connery, aparece um aristocrático e avermelhado indivíduo, precursor dos hoje denominados metrossexuais, um Roger Moore que outorga a Bond um ar de cinismo e elegância, sem se esquecer que é também um matador a soldo de Sua Majestade. Moore é menos violento talvez, sua imagem é mais cuidada, seduz com mais refinamento, sem ostentação física, sorri mais e sutilmente. Mas Moore era definitivamente mau ator, aquele que genericamente se conhece como canastrão.
E David Niven, alguém se lembra? Pois foi Sir James Bond na primeira versão de ‘Cassino Royale’, uma extravagância a turvar a série com más lembranças, uma rematada e desmiolada tolice em que os atores corriam de um lado para o outro, com certeza atrás do cheque. David Niven era...David Niven, um Bond-Niven. Mas apesar de tudo melhor, muito melhor que o australiano George Lazenby, uma espécie de ‘stone face’ de quem ninguém podia dizer absolutamente nada contra. Ou a favor.
Chega então o turno de Timothy Dalton, de olhos felinos, chegado ao modelo conneryano, mas numa linha espectral, um sujeito tétrico, obscuro, aparentemente mal ajustado na fôrma de 007. Sua passagem pela franquia resultou insípida e pouco lucrativa, e logo Dalton voltou a seus afazeres teatrais e a filmes com intrigas menos sofisticadas e mais institucionalizadas.
E então os produtores descobrem o irlandês Pierce Brosnan, com ares mais lúcidos e serenos. Modelo apropriado para combater o terror internacional, assim meio sem bandeira, bancado pelas grandes. O mais franzino da série – Niven não conta... –, Brosnan revela-se muito bom com o arsenal disponibilizado pelo prof. Pardal do M-16, o infatigável Q. E vem a dúvida: seria o novo Bond melhor que Connery? Melhor não, porque afinal foi para o escocês que Ursula Andress surgiu estátua grega das águas caribenhas em ‘Dr. No’.
Mas Brosnan chega bem perto ao criar sua fórmula para o personagem: refinado sem certos insinuações gay de Moore, duro e mortífero sem a sádica brutalidade Connery. Um certo ar blasé e distanciado em certas cenas. Teve belas mulheres e a todas amou com entrega, especialmente a Sophie Marceau de ‘O Mundo Não é o Bastante’.
E o sexto da série – Niven de novo não conta... – foi a aposta que os produtores fizeram com a intenção de suplantar Brosnan. Mal-humorado, protegido das oscilações emocionais por uma couraça protetora, mas que a bela Vésper Lynd (Eva Green, não uma ‘bond girl’ qualquer) derrete sem piedade, o Bond de Daniel Craig sorri pouco e sangra muito, o que não significa uma linha mestra a ser seguida mas que funciona a contento neste ‘Cassino Royale’ em exibição. Craig pode dar certo como esta mescla de Ben Gazzara e Steve McQueen.
Cara algo disforme de quem beijou mais a lona do que belas mulheres, peso médio saradão de olhos azuis gelados, aqui é ele quem sai das águas. Não é sedutor ou charmoso como Connery ou Brosnan. É prático como um estivador descarregando um navio, e não tem na ponta da língua a resposta que encanta a platéia.
O sentido do humor só oferece involuntariamente, como quando responde ‘e eu com isso ?!’ ao barman que pergunta se quer o Martini mexido ou batido – uma private joke que somente os ‘bondófilos’ curtem na plenitude. Ou quando desafia seu torturador. Sabe matar, sabe sofrer em silêncio ou alto e bom som, sabe olhar com ódio. Está levando muito jeito de emplacar como ícone desses novíssimos tempos pós 11 de setembro. Dá até para ouvir o coro dos ex-agentes, parafraseando a História: ‘Ave, 007, os aposentados te saúdam’.