Estreias

Almodóvar e seus muitos regressos

20 nov 2006 às 07:58

Um grupo de mulheres limpando e ajeitando túmulos num cemitério é o impressionante e significativo plano de abertura do mais recente filme de Pedro Almodóvar, ''Volver'', que chega ao circuito brasileiro.

Em que pese a cena, não se trata de obra com atmosfera mais carregada do que outros títulos de sua carreira, embora o tema da morte, tão caro à cultura espanhola e ao cineasta, paire de ponta a ponta sobre esta narrativa que gira ao redor da idéia do reencontro de Almodóvar e de sua própria história.


Quando alguém regressa para o lugar de onde um dia saiu, muitas vezes quem sabe para não mais ''volver'', o sentimento mais comum é o de desoladora nostalgia. O olhar de quem volta é sempre diferente daquele de quando partiu.


A experiência, mais ou menos feliz, mais ou menos traumática da viagem empreendida, faz com que sempre pese mais o perdido do que o adquirido. Isto não está nos livros e nem nos filmes, isto nos ensina a experiência, e temos que reconhecer que, ao fim e ao cabo, a vida, mais que um sopro, é antes um suspiro.


O título ''Volver'', tão singelo na aparência, esconde - melhor: resguarda - numerosos significados. É a história de um regresso, uma viagem de ida e volta às origens do diretor, um ''pueblo'', uma cidadezinha do interior na região da Mancha muito parecida com o lugar onde ele nasceu.


Significa também a retomada da comédia e do universo feminino, que ocupa grande parte de sua filmografia. E ainda o reencontro com uma de suas atrizes mais emblemáticas, Carmen Maura, de quem andou afastado por ''pequenas rusgas que os dois nem se lembram mais por que'', segundo Almodóvar explicou ao lado de uma emocionadíssima Carmen, durante entrevista coletiva este ano em Cannes.


O filme pressupõe ainda um olhar à própria trajetória de Almodóvar até o momento, uma espécie de súmula que parte de suas temáticas mais constantes somadas à estilização formal. É sem dúvida uma demonstração do momento de grande maturidade criadora por que passa o realizador.


Raimunda (Penélope Cruz) é uma jovem mãe, empreendedora e muito atraente, com um marido desempregado e uma filha em plena adolescência. A economia familiar é precária, o que obriga Raimunda a se desdobrar em várias frentes de trabalho. É uma mulher forte, lutadora nata, mas que às vezes não esconde a fragilidade emocional. Desde pequena guarda bem guardado um terrível segredo.


A irmã mais velha, Sole (Lola DueÀas), foi abandonada pelo marido e vive só. Num domingo de primavera, Sole diz a Raimunda que Agustina (Bianca Portillo), uma vizinha na cidadezinha natal, informou por telefone que a tia Paula (Chus Lampreave) morreu.


É neste momento também que o marido de Raimunda tenta abusar sexualmente da filha, que esfaqueia e mata o agressor. Claro que a partir daí as coisas mudam de forma radical para Raimunda. A circunstância vai transformar positivamente sua vida, inclusive com o reaparecimento da mãe (Carmen Maura) que todos julgavam morta.


Neste melodrama enriquecido por generosa (e hilária) comicidade, Almodóvar olha para trás pela segunda vez nos últimos cinco anos, analisando o entorno de onde um dia saiu, sem dúvida, entre outras razões, em busca de liberdade.


Esta aproximação frontal, esta catarse teve seu primeiro e amargo episódio em ''La Mala Educación'', um filme com definida carga ideológica e transgressora. Agora ele se pergunta o que se esconde atrás dos muros, das portas, das janelas das casas armazenadas em seu banco de memória.


Ali, com certeza, a presença da morte e de sua aceitação como parte mesma da vida. Ali também os signos de identidade sob os quais está uma profunda reivindicação do papel da mulher e, em especial, da figura da mãe. Da mãe dele, Almodóvar, também.


Quem acompanha com atenção este cinema tão enérgico e lúcido criado por Almodóvar, vai usufruir ainda mais sua já proverbial intertextualidade, que aqui mescla seu passado cinematográfico com as habituais referências: o melodrama clássico hollywoodiano cooptado por assumida ''sangria'', os olhares hitchcockianos, a inspiração vinda do neo-realismo italiano, recordando, de forma explícita, o ''Bellissima'' de Visconti, além da crônica de costumes e da música popular. Aqui, em ''Volver'', é preciso agregar o corte fantástico insinuado e delineado através da mãe que volta da morte para cuidar dos seus. Ela, como alguns fantasmas de clássicos do cinema, volta para resolver certos assuntos pendentes.


Filmes de Almodóvar nunca se esgotam numa única abordagem porque sempre ricos do melhor recheio que o espectador pode desejar: humanidade em seu sentido mais caloroso. Por vezes dolorosa, por vezes tragicômica, absurda e mágica como em ''Volver'', mas sempre generosa, que perdoa e reconcilia.


E as mulheres deste elenco, todas, que maravilhosa contribuição! Penélope Cruz, meio perdida no cenário internacional, recebe um papel que é o maior presente que uma atriz poderia desejar. Carmen Maura, sempre esplêndida e de grande eficácia naturalista, mostra que cumplicidade com a direção é fundamental, e deita e rola (para baixo da cama...) como a mãe rediviva.

Um filme para não perder, em absoluto.


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