Para todos os gostos
Luiz Carlos Merten
Agência Estado
Allenmaníacos de carteirinha já andavam duvidando do futuro de Woody Allen depois de assistir a ‘Celebridades’. Nada como um filme depois do outro. ‘Poucas e Boas’, que estréia hoje em circuito nacional, incluindo Curitiba (veja programação de cinema na página 4), deve reconciliar o ator e diretor com seu fã-clube. Não é um filme farol, como foram ‘Noivo Neurótico, Noiva Nervosa’ e ‘Manhattan’, nos anos 70, ou ‘Anna e Suas Irmãs’, ‘Zelig’ e ‘A Rosa Púrpura do Cairo’, nos 80, mas é um belo trabalho do sofisticado rei do humor de Nova York. Tem tudo a ver com ‘Zelig’. E remete a uma paixão reconhecida de Allen - o jazz.
Ele já quis ser o Ingmar Bergman americano, trabalhando no registro do humor. Fez filmes que bebiam diretamente na fonte do mestre sueco - ‘Interiores’ e ‘Sonhos Eróticos numa Noite de Verão’ - para falar das angústias e neuroses do homem contemporâneo. Allen também ama a grande literatura russa e baseou-se em Leon Tolstoi para fazer ‘A Última Noite de Boris Grushenko’ e em Dostoievski para outra de suas obras maiores - ‘Crimes e Pecados’. Mas talvez tenha sido com ‘Zelig’ e ‘A Rosa Púrpura’, por meio da síndrome de Cecília, que Allen virou arauto da pós-modernidade, sintetizando tendências dominantes do cinema naquela década.
Há um Allen revolucionário da linguagem, mas essa revolução, digamos, da forma, não assume a dimensão provocadora de um Jean-Luc Godard, que ele também admira. A forma interessa-lhe pelo fundo - como instrumento para uma reflexão sobre o homem no mundo. Allen nunca foi um narrador ‘clássico’, mas a partir de ‘Maridos e Esposas’ nunca duvidou tanto da própria narração. Não foi por acaso que fez ‘Descosntruindo Harry’. O título do filme talvez se aplique à sua obra inteira - e aos rumos que volta e meia assume.
Em ‘Poucas e Boas’, Allen retoma a bandeira de Zelig para fazer o retrato do artista como um ser camaleônico, em eterna mutação ou em permanente osmose com aqueles a quem admira. O artista como zelig. No filme com esse título, o próprio Allen interpretava o homem com a capacidade de se assemelhar às pessoas das quais se aproximava. Além da condenação ao fascismo implícita nesse retrato de homem anônimo (ou medíocre), o filme surpreendia pelo tour-de-force técnico. Foi o precursor de ‘Forrest Gump’, e melhor que o filme famoso de Robert Zemeckis com Tom Hanks.
Sean Penn, em seu melhor papel, é Emmet Ray, o segundo maior guitarrista do mundo. É o zelig assumido do cigano Django Reinhardt, o número um absoluto. Allen trabalha como figura real, embora pouco conhecida, uma figura que é pura ficção. É capaz de deixar o espectador na dúvida. Tudo é regido pelo signo da fantasia e da dúvida. Os sucessivos narradores, um deles é Allen, referem-se aos diferentes episódios como ‘aquelas histórias de Emmett Ray’. Uma dessas histórias é a de um suposto assalto, reconstituída segundo três diferentes versões. O que é realidade, o que é ficção? Como em Zelig, não existem fronteiras definidas.