Na entrevista que concedeu à Folha em setembro último, no Festival de Veneza, o diretor Ang Lee disse porque tinha realizado ''O Segredo de Brokeback Mountain'', o ''neowestern'' anticonvencional que acabou premiado com o Leão de Ouro: ''Se um projeto não é intimidador, ou não representa um desafio ou não é sensível, ele será sempre menos interessante para mim''.
O cineasta taiwanês de 51 anos, que já havia demonstrado com esmerado talento a capacidade de mimetizar-se com as culturas pelas quais seu cinema transita, em especial a americana, resolveu desta vez enveredar pela dolorosa intimidade de dois personagens pouco convencionais e contar uma ''love story gay'' em território improvável, não somente americana, mas universal. O filme, que na última segunda feira recebeu oito indicações para o Oscar, estréia em 86 salas de 29 cidades espalhadas por 15 estados brasileiros.
Desde que o cinema é cinema, o ''western'' foi considerado o gênero mais paradigmático da hombridade e da virilidade. Território por excelência dos bravos e dos fortes, dos machos rudes e heteros das fronteiras, o ''western'', quando muito, condescendeu com uma ou outra transgressão, de resto sempre inoculada com o máximo de discrição e sutileza para nem sequer arranhar os pilares da América dos pioneiros.
Por isto, ''Brokeback Mountain'' é um filme que parece ter surgido no momento justo e no lugar indicado, isto é, no seio da comunidade hollywoodiana agora disposta a reconhecer as produções independentes mais arriscadas, as minorias sexuais e inclusive, como neste caso, a dar valor a uma história que desafia as origens e os códigos de fundação de um gênero tão clássico.
Baseado em elogiado conto de Annie Proulx publicado em 1997 na revista New Yorker, este ''western'' decididamente avesso aos cânones narra a relação passional e tortuosa entre dois jovens cowboys, Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal).
Eles iniciam juntos, na região bela mas isolada de Brockeback Mountain, a dura lida de pastorear centenas de ovelhas. Numa noite gelada, esgotadas as reservas de whisky, dão rédea solta a uma tácita atração surgida desde que se conheceram na fila para o novo emprego.
Depois do idílio inicial, Ennis e Jack se separam, se casam, têm filhos, se reencontram e passam a levar vida dupla, cercados por uma sociedade reprimida, repressora e regulada pelas aparências. Apesar das pressões, não deixam de manter encontros secretos, esporádicos, fugazes, tormentosos e apaixonados, rodeados pelo cenário de Brokeback Mountain, aquela paisagem que marcou para sempre a vida de ambos. Paisagem metafórica que é a um só tempo lugar de grandes recordações e cárcere privado para uma relação que não sobreviveria longe dali.
Nem escandaloso, provocativo ou audacioso, ''O Segredo de Brokeback Mountain'' é um filme que aposta com precisão (e ganha com sobras) ao adotar um tom de narrativa mediano, cuidadoso e austero. Digamos que é um melodrama contido, às vezes até excessivamente frio e contemplativo. Aqui o clima, o poder de sugestão, a inteligência das observações adquirem peso e importância consideráveis.
Como se quisesse compreender o espírito do Oeste, Ang Lee filma a imponência e a eternidade imperturbáveis da natureza em contraposição ao desgaste emocional de seus personagens, aos estragos que o tempo vai acumulando sobre Jack e Ennis.
É sábia esta decisão de Lee, porque assim ele evita a armadilha da denúncia simplista - a homofobia está sempre apenas sugerida, o que torna ainda mais sinistra a punição da ordem social. E por outro lado, se agarra aos recursos legítimos do melodrama, não aqueles melodramas duros do alemão Rainer Fassbinder nos anos 1970 ou ao mais recente e brilhante meta-melodrama hollywoodiano ''Longe do Paraíso'' que Todd Haynes realizou em 2002.
O olhar de Lee, todavia, alcança mais além dos limites deste drama privado. A partir dele, o cineasta constrói um contundente retrato de uma parte da América, através de temas que vem dissecando em sua sempre surpreendente filmografia: o amor, a amizade, a família ou o confronto entre o velho e o novo. Assuntos recorrentes em ''Banquete de Casamento'', ''Razão e Sensibilidade'', ''Cavalgando com o Diabo'', ''O Tigre e o Dragão''.
A bela fotografia do ascendente mexicano Rodrigo Prieto garante o soberbo andamento visual, e a muito funcional trilha sonora do argentino Gustavo Santaolalla contribui para a atmosfera pretendida. No elenco, Ledger e Gyllenhaal sustentam a narrativa com brava convicção, mas não se deve esquecer do capataz vivido por Randy Quaid e dos personagens femininos, frequentemente mais intensos que os homens.