O tema sempre vai incomodar os alemães. É fantasmagoria permanente, uma recorrência que vem até admitindo e acomodando intervalos de trégua mais prolongada, mas que insiste em fustigar a memória e assombrar o presente - quer queira, quer não, de uma forma ou de outra - do povo que há cerca de setenta anos ajudou a embalar o ovo da serpente. E quando surge um filme como ''A Queda - Os Últimos Dias de Hitler'', tremem os divãs dos psicanalistas germânicos.
Berlim, abril de 1945. O exército russo avança para controlar a cidade, apesar dos derradeiros e inúteis esforços da defesa nazista. No bunker da Chancelaria, último e minado reduto de poder, os dias transcorrem entre a incredulidade diante de uma derrota iminente, as distrações banais e outros assuntos que façam esquecer a guerra e a precária situação, o desespero, a demente opinião de Hitler tentando convencer de que nem tudo está perdido.
Este é o painel de ''A Queda - Os Últimos Dias de Hitler'', que chega a Londrina após uma bem sucedida carreira nos últimos dois meses nas principais cidades do circuito lançador do país.
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Para alertar incautos e desinformados: não é um foco hollywoodiano (embora seja uma superprodução de 18 milhões de dólares), mas uma produção alemã, com atores, diretor e equipe técnica desconhecidos do grande público.
É um filme um pouco mais longo (150 minutos), com elevado teor de densidade dramático, claustrofóbico em forma e fundo. E de visão inadiável. Com ele é possível ter uma acurada aula de história, uma alucinante descida ao inferno das ideologias totalitárias e uma minuciosa visita aos domínios do sociopatia em sua sinistra e destrutiva plenitude.
Traçando uma panorâmica na filmografia que aborda a Segunda Guerra Mundial, é possível constatar o grau de prolixidade do assunto através de imagens. No entanto, o flagrante dos últimos momentos do Fuhrer jamais havia sido trabalhado de maneira tão aprofundada. E complexa - que ninguém se intimide, pois é grau de complexidade não tortuosa, do tipo aberto e convidativo a exercícios de racionalismo (tratando-se de Hitler, acho que é a formula preferível).
O diretor Olivier Hirschbiegel relata, a partir do roteiro baseado no livro do escritor e jornalista Joachim Fest - em lançamento no Brasil - como foram os últimos dias de Adolf Hitler no bunker que o ditador mandou construir nos jardins da Chancelaria.
Outra fonte em que se baseou o roteirista e também produtor Bernd Eichinger foi o livro da secretária particular de Hitler, Traudl Junge, que já havia sido brilhantemente aproveitado pelo cinema num despojado mas essencial documentário apresentado no Festival de Berlim em 2002. A personagem é peça vital para a compreensão do trauma.
Hirschbiegel consegue transmitir, seja por seu extraordinário elenco coral, seja pela produção artística de alto nível ou ainda pela evolução dramática do argumento, toda a crueza desses últimos estertores do regime e os desvarios suicidas do nacional-socialismo. E se você pretende sorrir no cinema, esqueça - o que se oferece é informação que levar o público a estremecer diante de tanta miséria humana.
''A Queda - Os Últimos Dias de Hitler'' foi acusado de ''imperdoável humanização'' e de que alguns personagens pareceriam quase heróis. Indignado durante entrevista na França em fins do ano passado, o cineasta alemão Wim Wenders lamentou com veemência e ira crispada o fato de o filme não mostrar em detalhes a morte de Hitler e Eva Braun, preferindo dar fim aos dois de porta fechada. Com o respeito que tenho pelo talento de Wenders, acredito que discordar é aqui mais que diletantismo, é obrigação.
Qualquer pessoa que assistir o filme com uma dose maior de atenção perceberá claramente as lições inerentes. E que não passam pelos protestos de Wenders. A tragédia que se desenrola em ''A Queda'' está envolta em circunstâncias atrozes e impressionantes.
E é impossível que alguém saia do cinema sem ser afetado pela narrativa. É uma história terrivelmente dramática, e que fala por si. Este final do Terceiro Reich reúne, concentra e agudiza todos aspectos que construíram o regime hitlerista.
E nesse sentido, nada é melhor do que começar a estudar a história do nazismo pela sua queda. Tudo está ali, em avassaladora concentração maligna: o arraigado niilismo do regime e a energia destruidora que desencadeou. Porque Hitler é na verdade a encarnação e o principal efeito multiplicador de uma fantasia aterradora em seu poder de aniquilação.
Acho que não resta dúvida que, ao ''humanizar'' o personagem central da tragédia, dando-se a ele falas e atitudes de um ser humano comum, o filme está enfatizando que o Mal tem cabeça, tronco e membros, respira, come, dorme, defeca, faz amor e tem cachorro de estimação. Assim como fazia Hitler, antes, durante e após mandar para os crematórios milhões de judeus.
Muito distante da caricatura e do estereótipo, e majestosamente incorporando a sinistra e impiedosa ''humanidade'' de Hilter, o ator austríaco Bruno Ganz é a verossimilhança da perversidade. Ganz consegue - e foi aí em que Wim Wenders não entendeu nada - fazer compreensíveis para o espectador as reações mais íntimas do personagem, o que, ao invés de desculpá-lo, o condenam duplamente.