Se fosse contar tempo de serviço nas telas, James Bond já teria excedido em dez anos o prazo para a aposentadoria, pelo menos em território nacional. São quatro décadas e meia de peripécias planetárias desde a primeira aparição do personagem em ''O Satânico Dr. No'', em 1962, o que equivale à ocupação de quase metade da história do cinema. É um feito e tanto, embora de importância relativa. E agora aqui está ele de volta. Infatigável. Renovado. Renovado?
Ao contrário da Coca-Cola, todo mundo conhece a fórmula da grife 007, tanto os ingredientes como a dosagem. E quando se esgota um componente, logo surge outro igual, ou desejavelmente igual.
Quem duvidar que pague o ingresso no circuito brasileiro: 360 cópias de ''Cassino Royale'', a aventura de número 21 da mais duradoura e rentável série já produzida, entram na faixa nobre do mercado doméstico, o que na prática equivale a quase 500 salas.
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Sean Connery, Roger Moore, Pierce Brosnan, a guerra fria, a União Soviética, Desmond Llewelyn (o genuíno e já falecido ''Q'', inventor dos gadgets usados por 007), uma garota, outra garota, mais um garota. Ano após ano, década após década, a franquia Bond alterou e repôs detalhes, cobriu lacunas, enfim, mudou para que tudo ficasse diferente mas sempre igual: o politicamente correto, o Martini agitado e não batido, o chefe M na pele de uma mulher, o cigarro banido, o tema musical visceralmente entranhado.
E assim chegamos a este ''Cassino Royale'', que em certo sentido deu uma guinada completa no estado de coisas até então vigentes no carrossel jamesbondiano. E coloca estas mesmas coisas subvertendo a teoria de Tomaso de Lampedusa em sua novela ''O Leopardo'': que nada mude em essência para que nada continue igual.
A trama, condensada e passada em revista. Nesta aventura que é ao mesmo tempo prequela e sequela, James Bond (Daniel Craig) está recém-promovido à categoria de agente 00, a tal que outorga licença para matar, apesar das dúvidas de seu chefe M (Judi Dench, magnífica na plenitude de seus 72 anos).
Entre suas primeiras missões está a de identificar e neutralizar um promoter do terrorismo internacional. Bond descobre que seu antagonista é Le Chiffre (o dinamarquês Mads Mikkelsen), com quem logo estará disputando uma sofisticada partida de pôquer no Cassino Royale. O agente e a bela Vesper Lynd (Eva Green) seguem até a republica de Montenegro, onde o vilão os aguarda na mesa de jogo.
Para não destoar do périplo de outros argumentos, desta vez o tour intercontinental de Bond vai de Praga a Uganda, passando por Londres, Madagascar, Miami e Bahamas, terminando em Veneza e no lago de Como.
''Cassino Royale'', publicada em 1953, é a primeira das novelas de Ian Fleming sobre o festejado agente, e por isso mesmo a eleição concreta deste livro já marca as diferenças pontuais que o filme do habilidoso Martin Campbell pretende estabelecer. De fato, além da adequação aos tempos que correm, a produção propõe uma série de consideráveis novidades em relação aos vinte títulos anteriores.
Por um lado, um conceito de ação muito mais estilizado, no qual não cabe aquele distanciamento irônico frequente na movimentação de Roger Moore ou Pierce Brosnan. Ao contrario, há um excesso de severidade absolutamente incomum na série.
Por outro, a perspectiva que ''Cassino Royale'' oferece de Bond nada tem a ver com a visão preconcebida do personagem. É acentuado aqui o caráter humano e emocional, e se incide em sua vulnerabilidade e duvidas.
No entanto esta visão não encontra correspondência mais ajustada na interpretação de Daniel Craig. Não que o ator esteja mal; ele realiza um trabalho mais que correto, sem qualquer dúvida, mas compõe um Bond calculista, frio, fechado como um bunker e sempre obscuro.
Nos momentos da ação, funciona como um relógio e amolda o personagem a outras necessidades e desafios: tem físico melhor treinado, mais sentido de humor do que elegância, é frio e duro como um cadáver no necrotério. Sua de fato a camisa e corre como nunca.
Mas não se dá lá muito bem quando é simultaneamente orientado para ser sensível e apaixonado. E o roteiro assinado por várias mãos, entre as quais do Paul Haggis de ''Menina de Ouro'' e ''Crash'', tem momentos de franca debilidade na criação do romance entre os personagens de Craig e Eva Green, com diálogos pretensiosamente inteligentes e carentes de sentido.
Mesmo que o argumento não tenha lá grandes rasgos de criatividade, e ainda que se reconheça que a metragem está desnecessariamente estendida em seus 144 minutos, devem ser apontados méritos no trabalho do neozelandês Martin Campbell, que já havia injetado alentada dose de hormônios regeneradores à serie há dez anos, quando Pierce Brosnan aportou ao personagem em ''Golden Eye''.
As passagens de ação estão magnificamente rodadas, frenéticas dentro dos limites jamesbondianos e sem o estapafúrdio hollywoodiano habitual, mais por conta da velha arte dos dublês especialistas e do ''feito à mão'' do que pelo novíssimo e já viciado engenho dos efeitos digitais.
Não interessa aqui julgar se ''Cassino Royale'' é melhor ou pior que os anteriores. Ou se Craig será melhor Bond que os melhores da série - digamos por ora que é um ator ''in progress''. No entanto, é bom ter bem nítido que é um filme diferente e que propõe novos parâmetros de familiaridade para com o mito e o rosto do mito. Talvez seja o caso de definir este como o início de uma nova etapa, mais realista e onde já não fazem falta os histrionismos de outras épocas.