Há quase um ano atrás, "Aquarius" fazia sua pré-estreia mundial no mais importante festival de cinema do mundo, Cannes, que testemunhou não somente a primeira exibição pública do segundo longa-metragem do prestigiado cineasta pernambucano, mas também o protesto que parte da equipe do filme fez nas escadarias do "Palais des Festivals et des Congrès of Cannes" - com cartazes denunciando que estava havendo um golpe de estado no Brasil.
"A gente está em outro momento dramático. Em maio de 2016, o Brasil estava passando por um processo de golpe completamente fajuto que tinha sido iniciado três semanas antes (com o afastamento de Dilma Rousseff para ser julgada pelo Senado, que resultou no seu impeachment). Como cidadãos tínhamos que tomar uma posição, e nossa posição, naquele momento, foi fazer aquele protesto, muito simples na verdade, muito pacífico", explicou o diretor pernambucano em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo.
Além dos compromissos com "Aquarius" e do novo cargo de curador de cinema do Instituto Moreira Salles, o diretor está roteirizando seu terceiro longa, "Bacurau", que, segundo ele, será filmado no segundo semestre deste ano e se trata de um filme de gênero que terá elementos de western, aventura e ficção científica.
Mas tudo isso pode ser uma pista falsa do próprio Kleber Mendonça Filho, que não fala de jeito nenhum sobre seus longas. "Rapaz, você não vai pescar coisas a respeito deste filme, porque nunca falo sobre nenhum deles", brinca ele com a insistência da reportagem em saber mais detalhes sobre seu novo filme. Abaixo os principais trechos da entrevista do diretor.
Qual o balanço que você faz de Aquarius depois de sua estreia mundial no Festival de Cannes em maio do ano passado?
Eu estou há onze meses viajando com esse filme. Agora ele está em 77 países, dos quais fui a 23 deles, entre festival e lançamento. Foi uma experiência muito feliz. Fui jornalista e crítico, e acompanhei os festivais e os lançamentos de filmes, e sempre observei que isso tudo era muito trabalhoso, uma coisa complexa.
E com Aquarius isso não foi diferente?
Sim, não foi mesmo, pelo contrário. Sempre há uma grande tensão quando um cineasta acaba um filme. "Será que ele será visto, se vai acontecer, se vai viralizar?". E até agora tive a sorte de ver O Som ao Redor e Aquarius virarem esse organismo, que saiu "andando" por aí.
O que mais lhe surpreendeu nessas viagens para lançar o filme?
A forma como os problemas que estão em Aquarius dialogam com as pessoas em outros países. O filme foi rodado na praia do Pina, em Boa Viagem, em Recife, e a sua problematização repercutiu em Sidney, na Austrália, no Centro de Los Angeles, na periferia de Paris, e agora em Londres. Em todos estes lugares as pessoas entenderam perfeitamente o problema da personagem Clara (vivido por Sonia Braga), que tem o seu lar ameaçado de uma hora para outra chega, como se o "mercado" chegasse dizendo: "A gente quer este lugar, porque ele subiu de preço, e agora nos interessa. Portanto, quero que você saia". Essa é a principal coisa mostrada no filme, que é universal. Para mim é sempre uma surpresa fazer um filme em sua casa e vê-lo ganhar ressonância no mundo.
Você fez dois filmes políticos, O Som ao Redor e Aquarius, e agora vai enveredar para o gênero terror no seu próximo filme Bacurau. Por que a mudança?
Na verdade se você olhar O Som ao Redor e Aquarius, lá vai encontrar elementos do cinema de gênero. Bacurau é mais escancarado. Eu não diria que ele é um filme de terror. Na verdade a gente só vai saber o que é de fato, depois que o filme ficar pronto. Eu diria hoje que ele é um western.
Western?
(Risos). É um western com elementos que podem ser chamados de ficção científica. Eu sempre termino um filme para tentar entender o que ele é.
Em que estágio se encontra o filme?
Estou terminando o roteiro.
E quando pretende filmar?
Espero filmar ainda este ano. Melhor dizendo, vou filmar no segundo semestre, com certeza.
A questão política dos seus dois longas te desgastaram?
Desgastaram?
Sim.
Francamente não, porque eu meio que deixo o filme ser o que ele tem que ser. Aconteceu uma sincronia muito inusitada do filme com o momento social e político do País. Qualquer pessoa lógica entende que é uma sincronia, porque os filmes são feitos no intervalo de três, quatro, anos. Aquarius foi feito (o roteiro) durante 2012, 2013, 2014. Eu acho lindo quando isso acontece. Se você olhar para a história do cinema, da música, do teatro, da literatura, isso aconteceu muitas vezes. Apenas tentei acompanhar da melhor maneira possível junto com meus amigos, que fizeram o filme comigo. Francamente achei tudo isso incrível.
Aquele ato político em Cannes foi pensando? Faria tudo novamente?
Claro. A gente está em outro momento dramático. Em maio de 2016, o Brasil estava passando por um processo de golpe completamente fajuto que tinha sido iniciado três semanas antes (com o afastamento de Dilma Rousseff para ser julgada pelo Senado que resultou no seu impeachment). O Ministério da Cultura tinha sido extinto uma semana antes. Como cidadãos tínhamos que tomar uma posição, e nossa posição, naquele momento, foi fazer aquele protesto, muito simples na verdade, muito pacífico.
Mas em um lugar de extrema ressonância, que é o Festival de Cannes?
Sim. Mas somos cidadãos, e podemos fazer isso. Aquilo foi para mim uma prova de cidadania. Se pudesse voltar no tempo, numa máquina do tempo, eu faria exatamente tudo como foi feito naquela ocasião.
O seu próximo se chamará Bacurau, que significa ave noturna...
Uma ave noturna e também o nome do último ônibus que você pode voltar para casa, apesar de que hoje tem o Uber. Mas antigamente, se você perdia o bacurau, tinha que dormir na rua.
O roteiro é seu de de Juliano Dornelles?
Sim, um grande amigo. Estamos terminando (o roteiro).
O roteiro se baseia em alguma história?
É um roteiro original. É um western, um filme de aventura na verdade, filmado no sertão, que se passa daqui a alguns anos.
Por isso terá um pouco de ficção científica?
Sim, terá um pouco.
O elenco foi pensando? Já têm nomes?
Essa é uma das partes mais complicadas de cada filme que faço. A gente quer começar em breve, porque vamos precisar de um elenco muito particular, muito especial. É de fato um processo muito complexo, sempre. Os dois outros longas não foram diferentes neste sentido.
Quando você fala "particular" é em que sentido?
Rapaz, você não vai pescar coisas a respeito deste filme, porque nunca falo sobre nenhum deles. Na sinopse de Aquarius não se especificava muito a história, assim como foi com O Som ao Redor. Mas é um elenco muito abrangente, principalmente na questão da faixa etária, de crianças até pessoas que têm 80, 85 anos de idade, é neste sentido. Mas não posso falar mais nada.
Você que considera o governo de Michel Temer ilegítimo, o que acha da possibilidade de cassarem a chapa Dilma/Temer? Seria uma possibilidade para um momento tão conturbado?
Eu realmente não tenho informações técnicas para falar sobre isso. Só acho que o Brasil chegou numa situação muito precária do ponto de vista político, do ponto de vista da democracia. Só espero que a gente saia desta situação que nos colocaram. Agora é muito complexo opinar sobre a possível cassação da chapa Temer no universo de poder onde as coisas não estão funcionando muito bem. A maior parte dos brasileiros vai concordar sobre isso.
Como está o trabalho de curador do Instituto Moreira Salles (IMS)?
Está excelente. Depois de falar com você, vou me encontrar com o pessoal do Instituto Moreira Salles para tratar dos detalhes da retrospectiva do diretor português João Pedro Rodrigues, que é um dos cineastas mais importantes em atividade no mundo. Vou mediar um encontro com ele na Gávea no sábado (dia 8). Além disso, estamos preparando uma programação para a sala de cinema da nova sede do Instituto Moreira Salles que será inaugurada na Avenida Paulista. Acho que será muito bom para São Paulo, que ganhará um belo espaço de cultura e de memória, diria melhor, excelente. Já visitei o lugar duas vezes.
Queria falar a respeito da denúncia anônima contra você junto ao Ministério Público Federal, que abriu um inquérito civil para apurar os fatos...
Estamos entrando com uma defesa. E todos os pontos levantados na denúncia anônima estão sendo defendidos por nós, inclusive uma acusação que dizia que a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) é um órgão do Ministério da Cultura, quando todos sabem que se trata de um órgão do Ministério da Educação. Há trinta e sete anos, a Fundaj é vinculada ao Ministério da Educação. E essa denúncia aconteceu seis dias depois do protesto em Cannes. E a gente de uma maneira correta, justa e democrática vai apresentar a defesa e espero que seja arquivada.
Essa denúncia atrapalhou de alguma maneira sua carreira?
Não, porque para começar é uma acusação anônima e não há absolutamente nada efetivamente contra mim.