Paraná

Uma história de amor à música

09 jan 2001 às 11:48

Nos últimos 70 anos, o trombonista e maestro carioca Raul de Barros vivenciou muitas das histórias mais importantes da música popular brasileira. Conviveu com Noel Rosa e tocou, entre outros, com Ary Barroso, Jorge Veiga, Carlos Galhardo, Francisco Alves, Aracy de Almeida, Carmem Miranda, Lamartine Babo, Benedito Lacerda e Pixinguinha, de quem foi grande amigo.

Em quase oito décadas de carreira, nas quais produziu cerca de 300 composições e gravou 40 discos, considera o seu "maior orgulho e maior tristeza" ter composto a mundialmente famosa canção "Pra Frente Brasil", que incitava "90 milhões em ação" na Copa do Mundo de 1970. "A maioria das pessoas não sabe que esta música é minha e eu nunca ganhei um centavo com ela", conta.


Hoje, aos 85 anos de idade, Raul de Barros vive isolado da cena musical numa modesta casa na praia de Maricá, região dos lagos do Rio de Janeiro. Sem compor há uma década, ele sonha em voltar a ter uma grande orquestra e a tocar regularmente. Nos últimos dois finais de semana, o mestre do samba e da MPB provou no litoral do Paraná o quanto ainda tem fôlego e disposição para isto. Foram quatro lotados e inesquecíveis shows no Cimples Bar Clube do Samba, além de animadas canjas no Café Curaçao de Guaratuba e no Hermes Bar, em Curitiba. Entre uma e outra apresentação, ele gentilmente atendeu a reportagem da Folha. Acompanhe alguns trechos:


Folha: Como foram seus primeiros passos no mundo da música?


Raul: Eu tenho vocação musical de nascimento, ela é espontânea, não é fabricada. Comecei a estudar violino aos sete anos de idade incentivado pelo meu padrinho, que foi quem me criou. Com oito anos eu já integrava a banda União Musical da Penha, onde tocava sax nas famosas festas da Penha, bairro em que morava. Aos domingos, tocávamos uniformizados, das 8 às 17 horas. Desde então, me considero um operário musical.


F: E quando aprendeu a tocar trombone?


R: Calma, chegaremos lá. Antes disto, aos 13 anos, fui enviado por meu padrinho para a Bahia, para estudar na Escola da Marinha. Ele queria que eu fosse militar. Lá eu fiquei três anos, mas sempre pensando na música. Como eu era pobre, nunca tinha tido o meu próprio instrumento musical, portanto não podia tocar. Certo dia em que estava de sentinela à noite, pedi para um colega ficar em meu lugar, fugi da escola e fui a um clube próximo que tinha orquestra. Me apresentei a eles e toquei à noite toda. Retornei às 4 horas da manhã, rendi meu colega, peguei o fuzil e fiquei no posto de sentinela. Veja só desde quando eu sofro pela música...(risos)


F: E o trombone?


R: Há, sim... De volta ao Rio, com meus 16, 17 anos, fui trabalhar como office boy num escritório. Certo dia, quando saí para entregar correspondências passei pela Rua do Ouvidor e vi um trombone na vitrine de uma loja de instrumentos musicais. Fiquei ali namorando o trombone horas e horas. Adeus correspondências que tinha para entregar. O dono da loja ficou intrigado e me convidou para entrar. Perguntou se eu sabia tocar trombone e eu disse que não. Ele o tirou da vitrine e me deu para experimentar. Senti uma alegria imensa e saí tocando na mesma hora. Eu sou um autodidata, aprendi a tocar sozinho, sou músico de nascimento, tudo em mim é espontâneo. O dono da loja ficou impressionado, disse que eu tinha "bom bico" e me deixou levar o trombone embora, para aprender a tocar em casa.


F: A partir daí o senhor começou a tocar profissionalmente?


R: Virei o trombonista mais requisitado do Rio de Janeiro. Todos os cantores que precisavam gravar, me chamavam, as gravadoras também me chamavam muito. Quando eu não podia ir, não mandavam ninguém, só podia ser eu. Mas a maioria com quem gravei já morreu.


F: Quem, por exemplo?


R: Eu era um garoto com cerca de 20 anos de idade e o Pixinguinha era maestro da Polícia Militar do Rio. Nós dois tocávamos no famoso "dancing" El Dourado. Ele ia gravar, precisava de um trombone e mandou me chamar. Não esqueço que a primeira música que gravamos era uma de Pedro Vargas e Pixinguinha. Foi nesta gravação que começou a nossa amizade.


F: Quem mais?


R: Eu e Ary Barrozo gravamos juntos várias vezes. Ele não era da Rádio Nacional, como eu, era da Rádio Tupi. Quando ele viajou para o Uruguai, eu fui um dos músicos convidados para ir com ele. Toquei duas vezes em Montevideo.


F: Como era trabalhar na Rádio Nacional?


R: Foram 20 anos consecutivos. Foi quando eu organizei a minha primeira orquestra, pequena, chamada "Raul de Barros e Sua Orquestra". Lamartine Babo tinha um programa de entretenimento chamado "Trem da Alegria". Com ele saíamos para tocar em teatros e circos. Nesta época eu tive inspiração para muita coisa... Foi aí que eu fiz o choro "Na Glória", baseado num ditado popular.


F: O senhor chegou a tocar também com Noel Rosa?


R: Não, nunca. Participávamos da mesma roda de músicos, mas não tínhamos intimidade. Ele era boêmio e farrista e eu não era nada disto. Eu era músico de bailes. Ele era boêmio e seresteiro. Em comum, apenas que eu vendia muita música para compositores que compravam dele também.


F: Quais músicos passaram por sua orquestra?


R: Muitos, mas a maioria já morreu. O Cauby Peixoto começou tocando lá e a Elizeth Cardoso também passou pela minha orquestra. Mas teve muito mais gente...


F: Como era tocar na orquestra do Copacabana Palace?


R: Era uma época boa de grandes bailes. A questão é que o Copacabana Palace era uma casa onde não entravam negros, era proibido. Eu fui o primeiro músico negro a tocar naquela orquestra.


F: Como o senhor perdeu os direitos autorais da canção "Pra Frente Brasil", que animou a Copa do Mundo de 70?


R: Ninguém sabe desta história, eu vou contar em detalhes. O compositor Miguel Gustavo, que é o letrista desta música, fazia muito "jingle" comercial. Este era mais um. No dia em que fomos gravar, ele chegou totalmente sem voz, com uma infecção na garganta. Tínhamos só a letra, mas não a música. Eu tive que improvisá-la ali mesmo e foi assim que surgiu a canção que foi sucesso no mundo inteiro. Mais tarde, quando eu fui reivindicar a minha parte, tudo o que ouvi foi "Procure a Justiça". Eu procurei, mas não consegui nada. Apesar de tudo, tenho muito orgulho, é a música mais famosa que já fiz.


F: O senhor viveu toda a efervescência musical dos anos 30 e 40, no Rio de Janeiro. Há como compará-la com a produção atual?


R: Sim, há. Acho que antigamente os compositores usavam muito mais a intuição, havia uma outra inspiração... Agora os temas ficam restritos a uma realidade estreita e comercial, hoje é a televisão que faz a música, que a inspira. Na minha opinião, as composições antigas eram mais ricas e mais românticas.


F: Como está o seu trabalho hoje?


R: Fiquei um ano de cama, com uma úlcera varicosa no calcanhar, mas já estou recuperado. No ano passado, estive aqui e toquei no Hermes Bar e depois no litoral (no Cimples Bar Clube do Samba). Agora me arrastaram novamente para esta terra gostosa que é Curitiba. Fiquei emocionado ao voltar.


F: Aos 85 anos, é preciso algum condicionamento físico especial para continuar com o mesmo fôlego durante os shows?

R: Não, é a minha natureza tocar. O que deve me ajudar a ter tanto fôlego para o trombone é que nunca fumei em toda a minha vida.


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