Paraná

Bárbara Heliodora: a dama crítica do teatro brasileiro

19 nov 2000 às 16:15

Em entrevista exclusiva à Folha Dois, em São Paulo, a crítica teatral Bárbara Heliodora falou do projeto, da obra de Martins Pena, do teatro nacional, do Festival de Teatro de Curitiba e de sua experiência profissional.

A senhora tem estado algumas vezes em Curitiba. Algum projeto interessante?


Fui chamada no Sesc-PR para falar sobre Martins Pena. Eles estão com um projeto que achei interessantíssimo, que nasceu do contato com o Tadeu Aguiar, que já tem uma carreira de teatro em escola e viaja muito pelo Brasil. Ele conversou com o pessoal do Sesc e propôs um projeto envolvendo cidades do interior e a capital do Estado. Cada uma vai montar uma peça diferente do Martins Pena. Depois vão se visitar mutuamente. De maneira que sete espetáculos serão vistos em cinco cidades (Curitiba encenará três).


Além da senhora quem mais participa do projeto?


O Zé Renato deu aulas de direção. Ele já dirigiu Martins Pena e foi dar umas dicas sobre a época, o estilo, etc. Depois, vão levar um cenógrafo para dar uma orientação do que se pode fazer em cenografia com recursos simples e também vai ter um workshop de movimento. Então, os diretores recebem um embasamento para poder trabalhr com mais informação. O ideal é que essa montagem se torne o núcleo de grupos permanentes nessas cidades.


A escolha de Martins Pena foi proposital?


Sou super fã do Martins Pena. Acho estraordinário o quanto ele é brasileiro, mesmo tendo escrito a primeira peça onze anos depois da Independência. E no entanto as obras têm um clima absolutamente brasileiro. É uma coisa extraordinária. Não é um autor português um autor de cultura portuguesa. É a vida, o cotidiano no Brasil. O mais surpreendente é que ele sem antecedentes teatrais (não havia uma vida teatral, nem houve uma herança teatral vinda de Portugal), é simplesmente um talento. Isso por que ele deve ter lido muito teatro clássico em inglês e francês, por que a gente sente a presença de MoliŠre e de Shakespeare. Não é que ele tenha feito coisas parecidas, mas que tenha aprendido muito com eles. Martisn Pena cria coisas genuinamente brasileiras e muito válidas para o teatro, cenicamente.


Quais as principais peças de Martins Pena, que têm essa visão brasileira do cotidiano?


"O Noviço" é a mais famosa. Tem "As Casadas Solteiras", "Dois Ingleses Maquinistas", "As Desgraças de uma Criança", "Quem Casa Quer Casa", e por ai vai. Ele escreveu 21 comédias. Duas ficaram incompletas. Ele escreveu também cinco dramas horríveis. Estava em moda, então, ele muito jovem, tentou escrever dramas e não acertou. O talento dele era para a observação local e comédia, que ele faz lindamente. É um autor precioso na história do teatro brasileiro.


Sobre o teatro nacional, atualmente, quais são as suas observações?


O teatro sofre de elefantismo. Está multifacetado. Mas principalmente, o que acontece é que os anos da censura foram muito danosos por que acabou com a carreira de vários autores e não deu aos jovens uma chance para começar. De maneira que tudo o que nós temos apareceu depois do fim da censura. Houve mais um renascimento do teatro brasileiro mas que, volta e meia, leva uma pancada na cabeça. Estava indo tudo muito bem, por volta dos anos 50. Veio a censura e parou tudo. Pintor pode pintar e ser descoberto cem anos depois, mas ator teatral tem de ser montado. Foi muito prejudicial. De maneira que houve um recomeço que é uma das razões do aparecimento do besteirol, que é uma forma simples, mas muito eficiente. Foi uma grande escola para esses autores jovens. Para o Mauro Razzi e o Falabella, escrever besterol deu uma experiência cênica que depois aproveitaram em outras peças. Foi mesmo um fenômeno de recomeço, de renascimento do teatro brasileiro. É impressionante ver o percentual de peças nacionais que estão em cartaz. É muito alto. Há um interesse pelo texto nacional. Pode ser ruim, pode ser bom, mas está acontecendo. Eventualmente há peças muito interessantes. A quantidade é necessária também. Inclusive aqueles autores que eu chamo de "bananeria de um cacho só". De repente a pessoa escreve uma peça, por que está com aquilo guardado lá dentro, e deixa soltar. Depois não faz mais nada. Mas não faz mal, se aquela foi boa, já prestou um serviço.


A senhora tem acompanhado o Festival de Curitiba?


Acho que o Festival de Curitiba está grande demais. Não está havendo uma seleção muito rigorosa. Está indo muita coisa que não deveria estar lá. Por outro lado, se essas pessoas trocassem idéias enquanto estivessem em Curitiba todas elas, seria muito positivo para o teatro de modo geral. Mas isso não acontece. Eles chegam, apresentam e vão embora. Seria muito importante, uns verem os espetáculos dos outros. Este último festival foi o que menos fez esforço para um intercâmbio. Das outras vezes havia conferências e uma série de outras coisas, mas esse último, achei que ficou um pouco no vácuo e muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Parece que está grande, nas na realidade está dispersivo.


E no eixo Rio-São Paulo, como a senhora tem visto?


Últimamente, o que mais me impressionou foi "A Controvérsia", texto de Carrière, dirigido por Paulo José, com o Matheus Nachtergale, o Otávio Augusto, Ivan Albuquerque. É uma peça de muito conteúdo, sobre a questão da controvérsia sobre se os nativos do novo mundo, teriam ou não alma, discutido pela Igreja. De maneira que é muito bem armada, o espetáculo muito bom, texto bem amarrado. Vi também "Mais Perto", que o texto não é muito bom mas o espetáculo é bem feito; "O Espetáculo da Mulher sem Pecado" é bastante caprichado também. A peça é fraca, mas é um bom espetáculo. Depois tem aquelas do Rio. de comédias leves que são de modo geral de textos fracos, mas de espetáculos caprichados, com boa produção como "Duas Mulheres e um Cadáver", com a Débora Bloch e a Fernanda Torres. O espetáculo é muito bom, bem dirigido, bem interpretado, O texto é fraco, uma bobagem, mas dá motivo para o trabalho interessante delas. "A Continuação da Partilha", "A Vida Passa" são simpáticos, engraçados, também.


Como foi a sua formação na área teatral?


Fiz a Faculdade de Filosofia no Rio de Janeiro e me graduei nos Estados Unidos em literatura inglesa. Havia muitas disciplcinas ligadas ao teatro, como Shakespeare, História do Teatro Universal, Teatro Antigo, Teatro Moderno, mas o mais importante foi que eu vi muito teatro, enquanto estava estudando. Os cursos me ensinaram muito a fazer análise. Depois casei, tive filhos, fiquei um pouca afastada. Começei a frequentar o Teatro Tablado, por que queria ver teatro. Sempre tive muita curiosidade sobre a realização do espetáculo. Para mim o grande milagre é transformar uma página escrita num espetáculo. É uma coisa maravilhosa. Com a Maria Clara Machado, no Tablado, eu via o processo de ensaio, mesmo de peças infantis, não tinha a menor importância. Via o processo de criação da transposição da página para o palco.


Como a imprensa conquistou-a para suas páginas?


Sempre gostei muito de fazer análise de texto. Nessa época, 1957, saiu da Tribuna da Imprensa a pessoa que fazia crítica. Começei lá. Mas fiquei só quatro meses. Fui então para o Jornal do Brasil, ainda em 1958. Mas foi um deus nos acuda, por que meu primeiro texto bateu com o do Mário Nunes que estava lá há muitos anos. Eu quis sair mas não deixaram, então ficou o Jornal do Brasil com dois críticos com posições completamente diferentes. Eu escrevia no suplemento e o Mário, no corpo do jornal. Fiquei lá seis anos. Ensinei na UniRio. Até que o Osvaldo Mendes me levou para fazer crítica na Revista Visão. Fiquei lá cinco anos, até ser chamada para O Globo. E estou no O Globo há dez anos.


Os críticos jovens estariam tão preparados para esse trabalho crítico, como a senhora?

Eu tive muita sorte por ter estudado fora e ter tido referências de espetáculos de várias naturezas. Vi teatro na Inglaterra, na França, na Alemanha, na Itália e por aí vai. Os referenciais de um crítico hoje em dia, que queira começar, estão muito pobres. O teatro está relativamente pobre, principalmente há um ano, quando houve uma retração de patrocínios. Há muitos espetáculos de dois personagens, monólogos. Acho que a experiência da variedade teatral falta para a visão do crítico, que tem de ver muita coisa para poder ter uma visão geral, referências, muita leitura, formação teórica. A experiência do ver é que está fraca, para a formação de novos críticos.


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