Um pouco antes de falecer, Thereza Franzin, que já entrava na casa dos 90 anos, expressou aos familiares um desejo um tanto quanto incomum. Ela, que era viúva e não tinha filhos, pediu aos parentes para deixar o lar que conquistara com tanto esforço para aqueles que mais precisavam. O pedido foi respeitado e, agora em 2024, a propriedade - que fica no Ruy Virmond Carnascialli, Zona Norte de Londrina - foi doada à caridade. O terreno tem cerca de 200 metros quadrados e vale aproximadamente R$ 200 mil.
Quem conta a história é a responsável legal por administrar os bens de Thereza, a sobrinha Madalena Franzin, 67, professora de Educação Física aposentada do estado do Paraná. Segundo ela, a casa sempre foi o porto seguro da idosa, o que reforça ainda mais o gesto de amor ao próximo.
Em cada canto da propriedade, é possível notar nos detalhes a assinatura de Thereza. As flores, que eram cultivadas por ela, ainda insistem em sobreviver em meio ao mato, que por mais que seja podado de tempos em tempos, é reflexo da ausência de moradores no local há cerca de seis anos.
A busca por um lar estável sempre foi prioridade na história da idosa. Ela nasceu em 1º de março de 1926 em Descalvado (SP) e chegou a Londrina com 8 anos, em 1934, juntamente com os pais Antonio Franzin e Josephina Padovan, imigrantes da Itália. Inicialmente foram morar no centro de Londrina, na avenida São Paulo. Cerca de dois anos depois, mudaram-se para um sítio no distrito Espírito Santo, lugar onde fizeram história ao morarem na propriedade assinada pelo engenheiro e primeiro prefeito de Londrina Willie Davids. O sítio foi vendido na década de 1970.
Aos 32 anos, casou-se com Manoel Alves Teixeira, jardineiro aposentado da UEL (Universidade Estadual de Londrina). O casal adquiriu residência na região do Bela Suiça, mas se estabeleceu no Parque Guanabara, local em que Thereza se tornou viúva.
Contra a sua vontade, precisou sair do lar que construiu com Manoel. No início dos anos 2000, mudou-se para a Zona Norte de Londrina. Desde então, transformou a casa do Carnascialli em sua nova residência.
Troca de casas e asilo
A independência era marca registrada na vida de Thereza. Muito bem relacionada com a vizinhança, via nos moradores da rua companheiros, que, por muitas vezes, eram cuidados pela idosa, mas também retribuíam o afeto. Porém, com o avanço da idade, não conseguiu mais viver sozinha.
"Ela tomava conta da casa quando veio para cá, e o meu sobrinho vinha dormir com ela de noite, para não ficar sozinha. Ela fazia tudo, mas a gente dava assistência com compras. Só que se passaram alguns anos e ela teve um derrame. Nós colocamos uns conhecidos para morar na frente e construímos uma casinha no fundo. Eles davam toda a assistência para ela em troca do aluguel", explicou a sobrinha à reportagem.
A família que auxiliava a idosa precisou sair da casa e a única alternativa encontrada foi levá-la para um asilo. "Ela já estava numa condição em que já não tomava banho sozinha. A gente pagava pessoas para darem banho nela, mas não tínhamos condições de pagar pessoas 24 horas. Aí achamos melhor alugar a casa e pagar o asilo no São Vicente de Paula - na Madre Leonia Milito. Ela ficou os últimos anos de vida ali", explicou Madalena.
Juntamente com o marido, o piloto aposentado da FAB (Força Aérea Brasileira) Humberto Sérgio Cavalcante Marcolino, 68, a professora assumiu o papel de gestora dos bens da tia.
"O dinheiro que sobrava da casa, fazíamos manutenção, reforma e comprávamos as coisas que precisava. Tudo o que o asilo não podia dar, a gente dava. Comprávamos medicação, iogurte, pagávamos exames particulares e ainda assim sobrou dinheiro."
Madalena e Humberto foram os familiares mais presentes nos últimos anos de vida de Thereza. Foi a professora aposentada quem levou a idosa para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) no dia do seu aniversário, 1º de março de 2018, um dia antes dela falecer. "Ela estava consciente. O médico deu a medicação e, no outro dia, infelizmente ela morreu", relembrou.
Herança para desconhecidos
Foi no asilo que Thereza se manifestou pela primeira vez com relação à doação da casa. "Ela falou na frente da irmã dela. Elas [irmã de Thereza e sobrinha] foram fazer uma visita. Quando elas chegaram ao asilo, eu perguntei na presença das duas: 'tia, o que a senhora gostaria de fazer com a sua casa quando a senhora não estiver mais aqui?'. Questionei se queria deixar para a família, mas ela ficou em silêncio. Perguntei se queria deixar para a caridade, e ela prontamente concordou", disse a sobrinha.
Mesmo com o desejo explicitado em vida, após a morte da idosa a família precisou fazer um inventário, pois a justiça não reconhecu a vontade de Thereza e ordenou uma investigação para procurar parentes, o que atrasou a doação em cerca de seis anos.
"Ela [a juíza] pediu um documento oficial de todos os herdeiros, ressaltando que abririam mão da casa. Foi uma loucura, porque eu tenho primos morando no Maranhão e em diversas outras partes." O desejo de deixar a herança para quem nem conhecia não foi uma tarefa fácil para os familiares, incumbidos da missão, porém foi realizado em setembro, quando aconteceu a entrega das chaves para a organização Filhos da Pobreza, da Fraternidade Toca de Assis.
Lar fraterno
A Toca de Assis acolhe hoje 13 idosos - todos ex-moradores de rua - que são cuidados e sustentados por meio do voluntariado. A organização também atende toda terça-feira cerca de 100 moradores de rua, distribuindo mantimentos.
"Todos [os 13] estão com a gente há mais de dez anos e nem todos são de Londrina. Vão ficar conosco até o último dia de vida. Eles têm toda a assistência - financeira, médica e psicológica - necessária", ressaltou Irmão Domingos, 56, gestor do espaço.
O local é custeado pelo voluntariado e recebe idosos com idade mínima de 60 anos. Para a casa de Thereza, o esperado era formar uma república para servir como casa de passagem para pessoas em processo de recuperação de vícios, projeto que esbarrou em problemas burocráticos de zoneamento.
"Aqui, a ideia inicial era uma república para ex-moradores de rua que estão saindo de casas terapêuticas. Quando eles saem, a família geralmente não os aceita, e voltar para onde eles se viciaram é pior. Por isso, aqui seria uma casa de transição até se estabilizarem", explicou o religioso.
Eles descobriram a impossibilidade, com relação ao zoneamento, há cerca de um mês, no processo de transferência do imóvel. Já havia duas pessoas na fila para ocupar a casa. Agora, vão alugar o espaço e o dinheiro será destinado para os necessitados. "Não posso usar o dinheiro da casa para reformas, por exemplo. Tem que ser diretamente para um trabalho com os pobres", enfatizou.