O nome é fictício a pedido do entrevistado, mas a história é real. Manoel Cardozo é servidor de carreira concursado subordinado a uma autoridade de alto escalão do funcionalismo federal. Esse chefe é conhecido pela impaciência com os subordinados. Faz comentários jocosos sobre o desempenho da equipe. Todo o mundo releva com o argumento de que tem gente pior.
Há alguns meses, o chefe xingou Cardozo na frente dos colegas. Na sequência, o servidor adoeceu e saiu de licença.
Só então, alertado por um profissional de saúde, associou o mal-estar que o acometia ao sentimento de humilhação que se tornara recorrente quando pisava na repartição. Decidiu, então, protocolar uma denúncia de assédio moral e pedir transferência. Ainda aguarda a conclusão de suas demandas.
Analisando os dados gerais sobre sobre esse tipo de procedimento no serviço público brasileiro, o desfecho dessa história ainda pode ser favorável ao chefe.
Essa tendência foi identifica na pesquisa "Servidoras e Servidores Públicos contra Assédio e Violência no Trabalho: Limites da Estabilidade do Mecanismo de Proteção".
Trata-se do mais amplo estudo do gênero já feito no Brasil, com dados consolidados para o Poder Executivo na União, nos estados e no Distrito Federal, entre 2022 até outubro de 2023.
A pesquisa foi encomendada pela República.org, entidade que fomenta a qualidade no serviço público, para dar luz ao tema, e será apresentado nesta sexta-feira (24) na Flip, a festa literária internacional, em Paraty (RJ).
"Acreditamos que a valorização do servidor público passa por discussões sensíveis como a do assédio, mas isso demanda dados para dar consistência às análises. Não havia um recorte tão detalhado quanto o que conseguimos com essa pesquisa", diz Vanessa Campagnac, vice-presidente do conselho da República.org.
"O assédio no setor público requer um atendimento mais específico por causa de caraterísticas particulares da atividade, como a estabilidade e a convivência mais prolongada das equipes em alguma área ou função."
O raio-X sobre o assédio mostra lacunas nos órgãos públicos para apurar as denúncias e punir os responsáveis.
A advogada Myrelle Jacob, que coordenou a pesquisa, afirma que um dos entraves é a morosidade. Desde o relato do eventual ilícito nos canais de denúncia até a instauração de algum procedimento administrativo transcorrem-se, em média, 500 dias.
O relato vai passar pelo crivo de uma ouvidoria, ser chancelada para corregedoria antes de chegar à fase de investigação.
Em um dos poucos trabalhos que compara esses trâmites nos setores público e privado no Brasil, realizado pela pesquisadora Margarida Barreto, identificou-se que 60% dos processos nas repartições públicas podem se prolongar por 36 meses. No setor privado, essa taxa cai para 4%.
Barreto relatou que chegou a encontrar casos de assédio em empresa pública com duração de oito anos, enquanto na empresa privada o máximo foi de um ano e meio.
A morosidade pode ser um fator que desestimula a denúncia.
Os dados coletados demonstram que, no ano passado, por exemplo, foram feitas 3.638 denúncias de assédio no âmbito do Executivo federal, uma fração do todo. Esse segmento conta com 1 milhão de servidores, cerca de 560 mil excluindo estatais.
"O número de denúncias é absurdamente baixo", diz a pesquisadora.
O levantamento também identificou uma maior propensão a denúncias sobre humilhação e constrangimento públicos. Do total das denúncias, 82% foram classificadas como assédio moral e 18%, como assédio sexual.
No entanto, apesar de haver mais queixas de assédio moral, o número de punidos, proporcionalmente, é inferior.
No caso do assédio moral, 12,3% das pessoas denunciadas receberam algum tipo de penalidade, com demissão de 1,5%. No caso do assédio sexual, 21,3% dos denunciados sofreram alguma penalidade, sendo que 9,4% foram demitidos.
A falta de um conceito detalhado para assédio moral, a ausência de previsão legal para o tratamento desse tipo de importunação e a tendência a ser considerado uma forma mais branda de assédio seriam algumas explicações para a baixa taxa de punição, explica a pesquisadora.
"Os números mostram como é difícil que uma denúncia leve efetivamente à abertura de um processo administrativo, mas a gente não tem clareza sobre o que ocorre no trâmite. Não é possível saber em que ponto uma denúncia foi arquivada", afirma Jacob.
A margem de reação do servidor assediado tem limitações judiciais. Se não se sentir atendido em um pleito administrativo, ele pode recorrer a um processo civil ou criminal, mas não à Justiça do Trabalho, uma vez que seu contrato não é regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Sobre os estados e o Distrito Federal, todos, segundo a pesquisa, têm algum tipo de canal de denúncia pela internet, mas apenas Minas Gerais instituiu um canal especifico.
"Na maioria dos entes federativos, o servidor faz a sua denúncia de assédio no mesmo canal em que a população reclama do buraco na rua", afirma Jacob.
No aspecto legal, a pesquisa identificou que quase metade dos governos estaduais ainda não tem estruturas aptas para atender o servidor que se sente assediado.
Dos 26 estados, 14 deles, além do Distrito Federal, adotaram legislações que tratam de assédio na administração pública. Desagregando por tema, o assédio sexual foi regulamentado por 5 unidades federativas, em comparação ao assédio moral, que ocorreu nos 14.
Apenas 2 estados definiram o conceito para assédio sexual (Amazonas e Rio Grande do Sul) e 12 descreveram o assédio moral (Acre, Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Tocantins, Rondônia, São Paulo e Sergipe).
Para além das estruturas de atendimento, Jacob questiona premissas sobre a temática.
O conceito de assédio, por exemplo, se restringe a relações entre as pessoas e o efeito de processo no trabalho, sem considerar a discriminação racial e de gênero.
"Na avaliação de uma denúncia, assédio moral, assédio sexual e discriminação são tratados como questões diferentes, mas na realidade não são. A discriminação não é um ato isolado, mas uma das raízes do assédio", afirma Jacob.
Outro ponto que incomoda a pesquisadora é o fato de as normas sobre o tema no serviço público não considerarem casos isolados de violência psicológica como assédio.
"Normalmente, assédio está associado a repetição de conduta, mas a gente sabe que um único ato, a depender de sua gravidade, já pode ser suficiente para afetar o emocional e o desempenho de um servidor."