Organizações que atuam com migrantes chamam de ilegais as novas regras que impedem pessoas em trânsito e sem visto de pedir refúgio no Brasil. As medidas, que entraram em vigor nesta segunda-feira (26), foram implementadas após a morte de um homem que havia permanecido na área restrita do Aeroporto de Guarulhos, num caso que despertou a atenção para possíveis violações de direitos humanos.
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Embora já esteja sendo aplicada, a mudança contradiz a Lei do Refúgio e ameaça direitos de quem deseja pedir proteção ao Estado brasileiro, afirmam a DPU (Defensoria Pública da União) e organizações do setor.
De acordo com as regras, divulgadas na última quinta-feira (22) pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, quem chegar ao Brasil sem visto e com outro país como destino final terá que obrigatoriamente seguir viagem ou retornar ao seu local de origem.
Procurados, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Polícia Federal não informaram quantas pessoas foram impactadas nesta segunda, tampouco quais foram as mudanças nos procedimentos dos agentes migratórios.
A mudança ocorre sob o pretexto de combater o fluxo ilegal de migrantes e o tráfico de pessoas. Ao divulgar a nota, a pasta afirmou que a medida tem amparo jurídico porque a inadmissão de passageiros em território brasileiro está prevista na Lei de Migrações.
A crítica de órgãos da sociedade civil, no entanto, refere-se a outro texto -a Lei do Refúgio, promulgada em 1997 para implementar as regras do Estatuto dos Refugiados, de 1951.
Segundo a legislação brasileira, "o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes", regra que estaria sendo violada com as mudanças implementadas pelo governo -segundo a DPU, as maiores em 25 anos na área do refúgio.
"É uma gambiarra jurídica muito frágil e ilegal", afirma João Chaves, defensor público federal e organizador do Manual de Assistência Jurídica a Migrantes e Refugiados. "A Lei do Refúgio é clara ao dizer que a pessoa pode pedir refúgio, mesmo que não tenha visto. É forçar uma situação que não existe na lei."
Na prática, afirma Chaves, a regra tenta impossibilitar o pedido de refúgio àqueles que praticam o chamado skiplagging -recurso, normalmente vetado por companhias aéreas, no qual o passageiro faz apenas um trecho da viagem que comprou e permanece no país que deveria ser um ponto de conexão.
Apesar do veto das empresas, a prática é comum e, no caso de solicitantes de refúgio, uma alternativa para fugir de seu país de origem e chegar a outro em que possa entrar sem visto. Assim, segundo o defensor, não deveria impossibilitar a análise do pedido de refúgio.
"O instituto do refúgio dá proteção ao migrante que está em situação irregular -mesmo que ele tenha chegado nadando, no porão de um navio ou com um documento falso. Se a pessoa está numa situação de alegada vulnerabilidade e perseguição no país de origem, a gente não deve julgar o modo como ela saiu, como ela chegou, mas analisar o caso dela", diz Chaves. "Falsificar um documento, para dar um exemplo bem absurdo, pode ter sido a única forma que a pessoa encontrou para chegar ao país."
A declaração do defensor foi corroborada pela própria DPU, que, em nota divulgada nesta segunda, afirmou que a mudança "é ilegal por violar o direito internacional dos refugiados, a Lei do Refúgio brasileira e o princípio do non-refoulement", preceito básico que impede a devolução de um potencial refugiado para evitar que ele corra perigo.
Organizações que atuam com migrantes também criticam as novas regras. Em comunicado, mais de 60 associações, coletivos e ONGs afirmam que as medidas colocam em risco a segurança e a dignidade de solicitantes de refúgio.
"A alegação de que tais medidas visam combater o tráfico de pessoas, embora legítima, não pode justificar a violação dos direitos humanos e a negação da proteção a indivíduos em situação de vulnerabilidade", diz trecho da nota, endossada pelo Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami), Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), entre outras organizações."
"Instamos as autoridades competentes a rever essa decisão absurda e a adotar abordagens mais humanitárias e respeitosas em relação aos viajantes em trânsito", acrescentam.
As novas regras foram implementadas em um momento em que o aeroporto de Guarulhos registra um recorde de solicitações de refúgio. Até 15 de julho, as autoridades tinham recebido 9.082 pedidos, mais do que o dobro dos 4.239 feitos em todo o ano passado, segundo dados da Polícia Federal mencionados em relatório do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O aumento dos pedidos tem sobrecarregado os serviços migratórios brasileiros. Nesta segunda, 576 viajantes inadmitidos no Brasil estavam no aeroporto de Guarulhos, segundo Murillo Martins, defensor público em Guarulhos.
Ele afirma que a sala reservada aos inadmitidos tem capacidade para 20 pessoas. Com a chegada em massa de novos migrantes, a grande maioria se amontoa em frente aos portões de embarque mais distantes e que têm menos movimento de passageiros. Muitos dormem no chão e não têm acesso a cobertores. Cerca de 70% dos pedidos são feitos por cidadãos do Nepal, do Vietnã e da Índia.
Migrantes sem visto regular ou documentação devem ficar no máximo 96 horas no aeroporto à espera de regularização, segundo a DPU. "Mas já vimos casos absurdos de pessoas que ficaram mais de um mês", diz Martins.
As condições no local ganharam projeção depois que um migrante, proveniente de Gana, morreu no último dia 13 -a causa não foi divulgada. O homem recebeu atendimento em um posto médico do aeroporto devido a problemas de saúde que tampouco foram especificados e, no dia 11, chegou a ser levado ao hospital.
Em nota divulgada nesta segunda, o Ministério da Justiça e Segurança Pública diz os novos procedimentos implementados nesta segunda têm o objetivo de "garantir a segurança, a dignidade e a integridade das pessoas que pretendem migrar" para o Brasil.